Fonte: Jornal do Brasil, de 26/05/1971.

Zoé:

— Minha fome de viagens, amor, voltou imperiosa, e como sempre me fez pensar em ti — em ti que estás sempre em trânsito por cidades louras e tristonhas. Também eu gostaria de na vida unicamente perder países, sendo outro constantemente. Mas os pequenos embaraços da burocracia me tolhem. Alguns meses atrás, agreguei-me a uma caravana que ia passear no Marrocos, Lisboa e Paris. Duas horas antes de partir o avião, disseram-me numa repartição policial que o meu passaporte havia caducado. “Não tem, importância, senhor”, respondi. “Pensando bem, não tenho nada a fazer no Marrocos”. E fiquei aqui, curtindo a triste condição de destinatário de cartões-postais.

Agora, tenho duas viagens em perspectiva, sendo que uma não elimina necessariamente a outra. A principal é um mergulho ao fundo do poço, uma nova e cruel investigação interior, como aquela que fiz ano passado e que tanto te magoou. (Tenho arquivada a carta em que tu, então pesquisando a vida de Vermeer em Delft, fizeste esta observação que me melancolizou semanas inteiras: “Nunca suspeitei que as pessoas pudessem sofrer assim no Brasil”). Essa empreitada, Zoé, já me tem tirado o sono, e brevemente aparecerá no Caderno B.

A outra viagem sucederá (desde que eu ponha mesmo o pé na estrada) no rumo Norte, consistindo em demandar a Bahia através do litoral capixaba. Irei com amigos, e onde houver luar e mar, acamparemos. Não temos pressa alguma: temos, isto sim, muitas saudades da paisagem brasileira e do gosto de Brasil que há nas pitangas e amoras. Com calma, terminaremos visitando o Acre. Se eu não for, meus amigos irão, o que é uma forma de me levarem atrás dos olhos. Portanto, vou.

Zoé, aqui no Rio dá-se um fato auspicioso que é o ressurgimento da Vênus Calipígia. Todas as mulheres e moças adquiriram colinas, renunciando à silhueta esquelética que marcou (triste marca!) os anos 60. E tu, que sempre foste a Deusa Carnuda por excelência, aqui estarias não digo diluída, mas devolvida à integridade de mulher com alma. Lembras-te de quando tinhas 20 anos e não te conformavas com a curiosidade puramente material que despertavas nos homens? E eu, muito malandro, debrucei-me em tua sensibilidade e inteligência, fingindo ignorar o que havia de pêssego em teu corpo... Mas não ignorava, e tu afinal te rendeste.

No verão presente, o Rio está lindo e inconstante. Nas tardes azuis e abrasantes, uma rachadura fulgurante quebra em dois o céu, como na vidraça riscada pelo diamante, e a chuvarada desce convulsionada pela ventania. Ontem mesmo tomei banho de chuva: era o dia 2 de fevereiro, Dia da Água, e me entreguei ritualisticamente à água. Os adolescentes vinham da praia, trazendo suas pranchas, e sorriam na chuva espessa. Pensei que só os corações enfermos, empedernidos, logram envelhecer aqui; os demais serão sempre infantis.

E tu, ó mulher angustiada, quando voltarás à tua terra e ao teu passado? Por que te obstinas nessa imitação de Greta Garbo, se és uma criatura de numerosa entrega? Muitos amigos meus nem sequer acreditam que existas efetivamente. Eu próprio estaria propenso a duvidar de tua existência real, se não carregasse recordações magníficas e se não recebesse regularmente tuas cartas.

Adeus, Zoé.

jose-carlos-oliveira
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.