Fonte:  Linhas tortas, São Paulo, Martins, 1962, pp. 102-103. Publicada, originalmente, em setembro de 1937.

Um dia destes, à porta de certa livraria, um poeta queixava-se amargamente dos donos da literatura. 

— Que donos? perguntou alguém.

E surgiram na conversa alguns nomes, que não se reproduzem aqui porque isto seria indiscrição. Em todo o caso fica registrada a amargura do poeta.

Há realmente uns figurões que se tornaram, com habilidade, proprietários da literatura nacional, como poderiam ser proprietários de estabelecimentos comerciais, arranha-céus, usinas, charqueadas ou seringais. São muito importantes e formam um pequeno sindicato que representa a inteligência indígena lá fora, nos pontos em que ela precisa aparecer de casaca.

Impossível saber porque esses cavalheiros fingem adotar ofício tão ruim, podendo dedicar-se a negócios rendosos, a política por exemplo, ou outra qualquer indústria. É preciso admitir que ser literato é bonito, embora o tipo que se enfeita com este nome nunca tenha escrito coisa nenhuma.

Se não fosse assim, não se compreenderia que pessoas razoáveis, bons pais de família, com dinheiro no banco e muita consideração na praça, homens gordos, gordíssimos, escolhessem uma profissão excelente para matar a fome os sujeitos que pretendem viver dela. Está claro que não ganham nada, isto é, ganham uma espécie de glória. Exatamente como se não ganhassem nada.

Mas é uma concorrência desleal, é uma desonestidade. O poeta que se lamentava na porta da livraria tem razão.

Há uma literatura que ninguém tem, que talvez nem tenha sido produzida, que se oferece ao estrangeiro, não em volumes, mas nas figuras de cidadãos bem educados, que falam com perfeição línguas difíceis e sabem frequentar embaixadas. Há outra, suada, ainda bem fraquinha, mas enfim uma coisa real, arranjada não se sabe como por indivíduos bastante ordinários.

A primeira comparece a sessões solenes e manifesta-se em discurso; a segunda atrapalha-se e mete os pés pelas mãos na presença de gente de cerimônia e só desembucha no papel.

A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva, mal vestida e de segunda classe, mora no interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente.

Está errado tudo. Por que é que essas duas instituições, que não têm parentesco e usam o mesmo nome, não entram numa combinação?

Já que a primeira, constituída pelos patrões, é bem alimentada e não produz, e a segunda, a da gentinha, trabalha com a barriga colada ao espinhaço, podiam entender-se. A primeira daria um salário (ou ordenado, que é o nome decente) à segunda, e esta faria livros que, com alguns consertos na ortografia e na sintaxe poderiam ser assinados por ministro, conselheiro, desembargador e outros letrados deste gênero.

graciliano-ramos
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.