Fonte: Linhas tortas, São Paulo, Martins, 1962, pp. 51-53. Publicada, originalmente, em O Índio, de janeiro, de 1921, com o pseudônimo J. Calisto.
Ouça a crônica de Graciliano Ramos na voz do ator Luiz Octavio Moraes.
Leitor amigo:
Neste modesto canto do jornal, discreteemos, se te agrada. Mas, antes de entabularmos conversa, não seria mau que nos conhecêssemos.
Eu já sei quem tu és. Não é preciso que me digas teu nome, tua profissão, algumas mazelas que por acaso — quem não as possui? — te ornam o caráter. Mas tu, decerto, não queres palestrar com um desconhecido. Infelizmente não tenho quem me apresente. Estou aqui de passagem. Sou um hóspede nesta folha. Quando me der na telha, arrumo a trouxa e vou-me embora. Em minha rápida conversação contigo, meu interesse é muito limitado. Se tiveres paciência de ouvir-me, bem; se não, põe o teu chapéu e raspa-te.
De qualquer forma, terás pouco a perder. Não te quero enganar. Não te venho fazer elogios. Podes estar descansado. Mesmo porque nem sei se me seria fácil encontrar em ti matéria para elogio. Não direi, por exemplo, verdadeiro amigo, que o quilo que usas tenha exatamente mil gramas e que as tuas transações, vistas de perto, não possam ser censuradas. Não direi isso.
Não direi, pobre matuto desengonçado, que sejas resoluto, forte, vivo, esperto. Eu mentiria se o fizesse. És apenas um pobre homem derreado ao peso da enxada, sofrivelmente achacado, otimamente obtuso. És o representante de uma raça condenada a desaparecer, absorvida por outras raças mais fortes, quando o país povoar-se. És o homem do deserto e acabarás quando o deserto acabar.. Não direi, rapariga bonita, que aplauda incondicionalmente os teus vestidos espalhafatosos e o pendor que possuis para só julgar coisas sérias, dignas de tua atenção, o pó de arroz, as fitas, o sapato à Luís XV, a saia escassa de pano. Não te quero fazer a corte. Tens boa aparência, sim, mas não tens aptidão sequer para arear um tacho ou remendar uma camisa. Não esperes as minhas gentilezas; não tenho isso.
Prefiro dizer-te francamente o que penso de ti, leitor amigo. Talvez assim seja melhor para nós ambos. Para ti, que procurarás corrigir-te: para mim, que ficarei tranquilo com a minha consciência. Podemos ser bons amigos. É até provável que assim aconteça. Se não acontecer, paciência. Se eu te viesse cantar loas, dizer que és um belo rapaz desempenado, honesto, inteligente, trabalhador, cheio de virtudes em suma, podia muito bem ser que tu, não possuindo nenhuma das qualidades mencionadas, mas tendo uma pequena dose de bom senso, me mostrasses a porta, indignado. Eu seria um reles adulador, e tu terias razão para pôr de molho tudo quanto eu dissesse de hoje em diante.
De resto não tens nenhum motivo para esperar de mim outra atitude. Não desejo ser-te agradável; prefiro ser-te útil. Sou assim uma espécie de vendedor ambulante de sabão para a pele, de unguento para feridas, de pomada para calos. Talvez não encontres virtude em meus medicamentos. Pode ser que os calos de tua consciência continuem duros e não sintas melhora na sarna que porventura tenhas na alma, doenças que te não desejo. Em todo o caso, teu prejuízo será pequeno. O remédio nada te custa. Se a doença te mata tanto pior para ti e para teus credores, mas terás a satisfação de dizer que recorreste a uma botica. Sempre será uma consolação, que talvez te sirva para alguma coisa.
Teu espanto em ver-me aqui é perfeitamente razoável. Naturalmente, esperaria encontrar nesta coluna alguém que tivesse, senão grande talento, pelo menos uma certa habilidade para forçar as paredes de teu crânio e introduzir qualquer coisa na massa que porventura ele encerre. Infelizmente, não foi possível encontrar um número considerável de indivíduos nas condições exigidas.
No páreo que se fez, para escolher o pessoal desta casa, houve candidatos que se portaram lamentavelmente. Eu, que fui o último a alcançar a meta, cheguei cansado, deitando a alma pela boca, positivamente estropiado. Não obstante, como os concorrentes eram poucos, necessário se fez conceder a todos prêmios de animação. Os que melhor correram estão ali pelo artigo de fundo e circunvizinhanças. Eu e alguns que me venceram por uma pequena diferença de cabeças escondemo-nos bisonhamente por estes recantos. Não esperes, pois, encontrar nestas crônicas coisas transcendentes. A profundidade assusta-me e é muito provável que te assuste também a ti, leitor amigo. Fiquemos calmamente à superfície.
Se entre as coisas que te vou dizer, da semana vindoura em diante, encontrarmos algum pretexto para rir, ficarei satisfeito. Porque enfim, enquanto rires, teu espírito estará tranquilo. Pelo menos um instante, ficarás melhor, mais leve, esquecerás teus males.
E quem sabe? Pode ser até que, durante dez minutos, te esqueças de fazer mal aos outros.