Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, 235-237. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 02/08/1960, e no livro Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2002, pp. 43-46.  

Abro o janelão do meu quarto. Ainda não amanheceu. Quem mandou dormir cedo? Não eram dez horas e, abraçado amorosamente a um travesseiro, rendera-me à maravilhosa morte do sono. Sonhei que jogava pôquer, fazia um straight flush de espadas (até dama) e, tal qual acontece quando estou acordado, ninguém me pagava. Que sina, esta minha, de sonhar sempre as mesmas coisas que vivo!

Ainda não amanheceu. Sopra um vento frio, muito forte. As nuvens são escuras e estão agitadas. Voam velozmente, e, de repente, partem-se em dois e três pedaços. Tenho certo medo de todas as coisas do céu. Do próprio céu. De Deus. Ensinaram-me, em menino, que todos os castigos vêm do céu, de Deus. E que, mesmo assim, eu deveria fazer tudo para ir para o céu. Não quero. Tenho medo, e tanto, que não aprendi o nome das estrelas nem das várias espécies de nuvens. A gente não sabe nada sobre as coisas de que tem medo. Teme, sem discutir. Mulher, por exemplo, que tem medo de barata, que sabe a mulher sobre as baratas? Assim sou eu, com o céu e Deus. Não sei nada. Temo-os. Agora, quem me garante que, dessas nuvens agitadas, não vá cair alguma coisa em minha cabeça? Quem me garante?

Aos poucos, a silhueta da montanha se desenha, escura, sobre o fundo esbranquiçado. "Que delícia estar sozinho!", penso, com a maior franqueza. Em companhia de quem eu poderia estar que já não me houvesse dito: "Saia desse sereno!"? E, no meu próximo espirro, mesmo que fosse daqui a dez anos, cobrar-me-ia o cuidado tomado: "Está vendo? Não lhe disse que aquele sereno ia lhe fazer mal?" Não há nada mais antigo que ser contra o sereno.

Nunca se faz rigorosamente o que se quer em companhia de outra pessoa. Pode ser-se feliz em companhia de outra pessoa, mas é uma felicidade de renúncia, como a do cristão que reza de joelhos, morrendo de dor, nas rótulas e nos rins. Ou, então, não é felicidade e sim uma atitude interesseira, de espera e emboscada. É-se feliz, vá lá, de esperança, ao lado de uma mulher.

A grande felicidade seria, portanto, a de estar-se inteiramente só em companhia de alguém. Mas quem seria esse alguém, tão perfeito? E eu, quem seria? Muita gente chama de felicidade a burrice que bate quando se está junto da pessoa amada. É uma burrice agradável, mas é burrice. Agora, se se quiser dizer que burrice e felicidade são dois estados parecidos, está certo. Pa-re-ci-dos. Mas nunca se é burro quando se está inteiramente só. E nunca se é rigorosamente feliz quando se está perto de alguém.

Enquanto pensava nessas coisas, tantas e tão lúcidas, clareou muito pouco. Logo, pensei tudo depressa, porque estava só, inteligente. Se houvesse alguém ao meu lado, por melhor que fosse, Santiago Dantas, a conversa teria ficado na dúvida do sereno fazer ou não fazer mal à saúde. Já seriam, portanto, oito da manhã. Mulher diz uma frase que, perante as leis civis e religiosas, deveria constituir justa causa para a anulação do matrimônio: "Vista um suéter, meu bem".

Abre-se o janelão ao lado do meu. É o cronista Braga, que se debruça. Penso em quanta gente gostaria de acordar e, como num milagre, ver o cronista Braga ao pé de si. Quanta mulher! Todavia, não é assim, como imagina. Começa que, quando se levanta, o cronista Braga está dormindo ainda e, durante dez minutos, não diz coisa com coisa. Quando principia a raciocinar, informa se o vento está soprando de sul ou de norte e o que irá acontecer, se for de noroeste. Tira do bolso um higrômetro e proclama o grau de umidade do ar. Daí por diante, começa a identificar os passarinhos pelo canto. Se voa uma andorinha, comenta-lhe o voo, que considera o mais gracioso.

Então, ao abrir-se o janelão ao lado, eis que surge o cronista Braga. Após o boletim meteorológico, conta que dormiu pouco, porque esteve a rever crônicas do seu próximo livro. Leu Proust. Sugere descermos à cidade e tomarmos um café. Lembro-lhe a falta de leite e vamos assim mesmo.

No nosso quase-caminhão, descemos, os dois, uma ladeira muito em pé. Se o freio falhar, serão dois cronistas a menos, numa cidade onde há (dizer com a música do samba) "mais cronista que mulher". O Sabiá veste sua japona de lã grossa, fechada até o queixo. Não somos suficientemente interessantes para nos aturarmos todos os dias. Mas damo-nos bem, nos fins de semana. Há muitos anos, com algumas interrupções, saímos, às sextas-feiras, para um lugar ou outro. Dormimos e comemos, o mais possível. Beber, havendo caráter, evita-se. Compramos coisas de trazer, como linguiças e boudins. Jogamos muito no bicho. Havendo dinheiro, jogamos alto. Quando os jogos são separados, ele ganha, eu não. Aqui, em Petrópolis, vamos ao ceramista de Itaipava, ao orquidário do caminho de Carangola e ao parque São Vicente. No mais, ficamos na avenida Quinze, vendo as moças. Está sempre pretendendo, o Sabiá, comprar um terreno num platô, de vista bonita. Pergunta muito o preço por metro quadrado. Rejeitamos convites para banhos de piscina.

É assim, leitor, que os vossos escravos se refazem, para que não vos falte o pão do espírito. Vão por aí, a dormir em bons lençóis, a revolver cada qual sua consciência, e voltam, de mente lúcida, tão viva e tão ungida, para (de minha parte) escrever estas chatices, às terças-feiras.

antonio-maria