Todo mundo se lembra da chacina de Matupá, em Mato Grosso. Foi a 23 de novembro de 1990. Três assaltantes foram linchados e queimados pela multidão enfurecida. O cinegrafista Leno Durrewald documentou a cena que foi depois para a televisão. Vi no Boris Casoy. Vídeo e áudio. Santo Deus, que horror! Paralisado, me veio um enjoo de botar as vísceras pra fora.

Chega uma altura da vida que a gente diz que já viu tudo. Engano, puro engano. O espetáculo humano é inesgotável. Enquanto estivermos aqui, frágeis e fortes, pecadores e santos, tudo pode acontecer. O pior e o melhor. Do gesto mais sublime ao ato mais cruel. Anjo e fera: é o ser humano. Somos nós. Mais do que a ficção, a realidade não tem limites. Você vê o que aconteceu agora em Porto Alegre.

No ocaso do ano, entre o Natal e o Ano Novo, na praça da Redenção. Redenção, vejam bem. Mal tínhamos saído do Natal, celebrando o nascimento do Redentor. A um passo do dia da Confraternização Universal. Dia da Paz. No calendário litúrgico, também o dia da Família, a partir do modelo cristão de Jesus, Maria e José. A vista de todos, à luz do sol, irrompe na praça um rapaz, Felipe, 28 anos, perseguindo Clovis, 51 anos. Passa por ali na hora Luciano Abib, fotógrafo. Um clique e o documento está pronto.

Por mais que pense, reflita e medite, não acho meio de sair do estupor que me assalta. Olho perplexo, em estado de choque. Tantas coincidências, tantos acasos acentuam o que ali está, brutal, em toda a sua hediondez. Sim, Felipe, o assassino, é filho de Clovis, o pai. Honrar pai e mãe. Não matar. Não, dessa vez foi longe demais. Isso é que é radicalizar. Insondável mistério. Como analisar episódio tão bárbaro? E por que assim documentado? Por que nesta época do ano?

Não sou juiz, nem testemunha. Tento me aproximar despojado de conceitos e preconceitos. O filho estava bêbado, dizem. Tanto pior. O pai batia na mãe. Um menino de rua começa no seio de uma família assim. Só que o pai malvado some no mundo. Não morre nas mãos de quem lhe deu a vida. Povos primitivos matam o pai velho e abrem caminho para o filho jovem. O pai-entulho, a castração. Mas tudo isto é conversa fiada diante desse crime aos nossos olhos. Desgraça tamanha não acontece de graça. Até onde matamos e morremos com esse pai e esse filho? Meu filho, por que fizeste isso?

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