Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Eu estava no carro em Petrópolis quando ouvi a notícia da morte do Yves Montand. A notícia me pôs uma sombra no coração. Mais uma. Pensei comigo: vou escrever. E já me veio aquele soprinho confortador que o vulgo chama de inspiração. Ia entrando em casa, disposto a tomar umas notinhas, e pensei de novo: qual! Preciso tomar cuidado. Olhar pra frente. Nada de ficar olhando pra trás como um saudosista chorão.
O Dalton Trevisan, quando me manda um original, só faz um pedido: Otto, seja cruel. Eu costumo pedir aos meus filhos para me policiarem. Sejam cruéis. Aí outro dia a Cristiana me advertiu: Pai, cuidado. Você está muito reminiscente. Pare de falar no Getúlio. Fiquei de crista baixa. Mas é isto mesmo. Depois de certa altura, a gente traz o cadáver do passado amarrado ao pé. Ou ao coração. É um cadáver muito sensível. Se o tocam, exala lembranças pelos poros.
Mas hoje não resisto. Tenho de falar no Yves Montand. Forte testemunha do meu passado, eu o vi pessoalmente duas vezes. Encontrei de bater papo, olho no olho. Uma vez com o Jorge Amado. O Jorge é a glória, íntimo de todas as glórias. E baiano. Deixei por conta dele as despesas da conversação. Dei lá um ou dois palpites. Outra vez foi no Rio, em 1982, na casa do Halfin, diretor da Air France. Estavam lá o Yves (olhem só a minha intimidade) e o Jorge Semprun. Nostálgico, discorri sobre o fantástico prestígio da França antigamente. E do francês, que hoje no Brasil é língua morta.
Foi um papo e tanto. O Semprun, espanhol, é um perfeito francês, graças à perseguição do Franco. O Montand, italiano, foi no colo da mãe pra França. O destino caprichou para fazer dele um europeu. Mais: um cidadão do mundo. Como chansonnier e como ator, chegou aonde chegou. Grande personagem. Paixão da Edith Piaf. Depois da Simone Signoret — que beleza! Até a Marilyn Monroe pegou uma casquinha. Nada de grande se faz sem paixão, dizia Pascal. Paixão mesmo.
No encontro de 82, conversamos sobre a denúncia que os dois, o Yves e o Jorge (agora é o Semprun), fizeram do stalinismo. Caíram-lhes as escamas dos olhos muito antes da Perestroika. E botaram a boca no trombone sem medo do patrulhamento. Me lembro da emoção com que vi “Z”, em Paris. E L’aveu. Me desculpem a meninada da Folha e o público jovem, mas eu sou mesmo um poço de reminiscências. O pior é que regurgitam e não tem como guardar.