Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Por mim, estava convencido de que o verão tinha chegado pra ficar. Mas já não se pode confiar em mais ninguém. Nem no verão, que é carioca por direito de nascença. E nunca se fez de rogado. Se o Observatório Nacional e as autoridades competentes não tomarem providência, por ele o verão fica aí banzando na praia o ano inteiro. Que nem um vadio em férias. Ou um turista argentino, desses que ainda não descobriram Maceió. Ou Porto de Galinhas.
Aquele calorão de derreter os untos e, eis senão quando, o frio está de volta. Frio mesmo. Pior: inverno molhado, com umidade até os ossos. Fui apanhado na serra e à traição. Nariz colado na janela, lareira acesa, lá fora um postal suíço. Os cobertores mofados devem ter contribuído. Passei a noite em claro. Na medida em que a tempestade alérgica me deixou ler, li adoidado. Foram 720 espirros, daqueles de expulsar gambá do sótão.
Tudo começou com um vento desvairado. Contrário e favorável, indeciso entre o frio e o quente, veio feroz como o aquilão. No Rio e por aí afora, a chuvinha manhosa está que está. Deus nos livre e guarde, me lembrei da chuva do Negrão. Aquela dos anos 60, que derreteu os morros. Encharcados, barraco e até prédio pareciam de papelão. Pedra secular, ou milenar, que sei eu, rolou de seu eterno abrigo. Na televisão, a gente procurava alertar as vítimas da litofobia.
Medo, horror às pedras. Cunhei eu a palavra, para acentuar o ineditismo da tragédia. Com um tempo assim, só ficando em casa. Sobe o índice de televisores ligados. Encapotada, vem aí a gripe. O vírus é novo, pra tapear os antibióticos. Já tem bactéria da quinta geração viciada em penicilina. Que nem barata em naftalina. Quando estiou um pouco, saí pra rua. Pois a chuva saiu atrás de mim, naquela morrinha. Muita gente junta nessa hora cheira a rato molhado.
Entrei no shopping, que remédio! E dei com o casal de velhos. Dois bravos, quem diria! Com a teimosia de quem dobrou as bodas de ouro, ele procurava um chaveiro. Fazer uma duplicata da chave. Já disse que não tem chaveiro aqui, ela teimava. Ele empacado, se recusava a andar. Tem chaveiro, sei que tem. Mas quem entende de shopping é mulher. Aos 15 anos ou aos 85, pouco importa. Tá bom, ele entregou os pontos. Mas pastel tem, não tem? E os dois foram comer pastéis, deliciados. De queijo e de palmito.