Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Era um desses que trazem no bronzeado da pele o selo de sua cidadania carioca. Praia toda manhã com a turma, um prazer sagrado. Um dia um companheiro se retirou mais cedo. Tenho muito o que fazer, disse. E perguntou se ele não queria ir embora. Foi quando o Sandro Moreyra explicou que tinha também por seu turno muito o que “lazer”. O particípio passado de fazer é feito. De “lazer” é leito, acrescentou.
O lazer, ou o ócio, é a mãe da filosofia. Quem o diz é Thomas Hobbes, que era do ramo: “Leisure is the mother of philosophy”. A partir do futebol e do Botafogo, Sandro filosofava todo dia na sua crônica. E sempre com bom humor. Se a filosofia não é incompatível com o ócio, é antes sua filha, também não o é com a praia. Se eu tivesse visto outro dia Helmut Kohl parado no calçadão de Copacabana olhando o mar, era capaz de jurar que estava filosofando.
Um alemão parado já é por si só meio filósofo. Calado e mirando o mar, é filósofo e meio. Mas não era propriamente filosofia o que ocupava a cabeça do chanceler alemão. Com 1,93 m de altura e 100 quilos de peso, parecia triste e pensativo. Digamos que uma pesquisa ali mesmo tentasse no palpite adivinhar em que pensava Herr Kohl. Com que sonhava ele naquela hora da tarde, ao sol de Copacabana?
Podia estar com o pensamento nos alagados da Amazônia, que visitou. Ou quem sabe, no polo oposto, lhe viessem à lembrança os saudáveis descendentes dos compatriotas que encontrou em Santa Catarina. Podia ser também que, sobrecenho carregado, pensasse na miséria da favela carioca que viu com os próprios olhos. Ou na triste nuvem dos meninos de rua. Gigante saudável, na força dos 61 anos, não seria descabido se por um momento também se desse ao luxo de apreciar as gatinhas de fio dental.
Mas nada disto. O chanceler ficou triste quando viu um monte de rapazes na praia. Àquela hora deviam estar trabalhando, disse. No governo, há nove anos, e agora da Alemanha unificada líder de altas virtudes, Herr Kohl que me desculpe, mas seu julgamento foi precipitado. Vadios não estão obrigatoriamente na praia. A “leisure class”, aliás, é coisa do Primeiro Mundo afluente. O chanceler nem parece alemão. Concluiu depressa demais, ao contrário daquele caricatural doutor Topsius do Eça de Queiroz. Pena que já não esteja aí o Sandro Moreyra para lhe dizer que há um jeito de pegar leve no pesado. Se é paradoxo, é também filosofia carioca.