Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Era numa rua paralela à avenida Copacabana. Vinha impaciente com aquele trânsito amarrado. Nunca me faltou uma vaga neste mundo, murmurei. Deo gratias, disse alto. A moça me olhou, espantada. Queria saber porque Nossa Senhora de Copacabana. Coisa de índio, a invocação começou na Bolívia. As culturas sempre se misturando. A palavra é quíchua, veio do Peru. Raríssimo traço que nos chegou do Pacífico.
Vá lá, traço de união entre os dois oceanos, Calderón de la Barca tem uma peça ― La aurora em Copacabana. Foi um índio, Yupanqui, quem esculpiu a primeira imagem de Nossa Senhora de Copacabana. Como é que chegou aqui ninguém sabe. O nome indígena era Sacopenapã. Tem qualquer coisa de Copacabana, não tem? Sacopenapã, Copacabana, eu repetia sem titubear. A moça, boquiaberta, não passava da terceira sílaba. Quem mandou ser gringa?
Queria tomar nota e buscava na bolsa a agenda. Falou em índio, ela se ouriçou toda. Poucos dias antes, eu tinha reaquecido minha sabença no Gastão Cruls. Pretendia escrever sobre o cenário de Copacabana. Copacabana, Sacopenapã, cantarolei. Aí, foi só atravessar a rua, entrar e nos abancar. Em baixo ou em cima? Em baixo. Agenda aberta, caneta na mão, a moça não escrevia nada. Morando ali perto, não tinha a menor ideia daquela confeitaria. E já estava indo embora.
Tamanho era o seu assombro que ela se esqueceu de pedir o chá. E foi espiar a pâtisserie. Já foi melhor, disse eu. Estão dizendo que vai acabar. Também pudera. Anos e anos no mesmo lugar. Essas luzes, esses espelhos, esses cristais. Até que enfim a moça fez o seu pedido. Ao meu lado, o garçom esperava impassível. Uma cerveja, disse eu. A moça desistiu de tomar nota. Dos índios passou à Gitta.
Gitta Mallasz, a húngara que dialogava com o anjo. Fugiu de um campo de concentração nazista. Morreu agora, em Paris, mais de 80 anos. Esotérica, a moça esbugalha seus grandes olhos azuis. O mistério dos encontros, já pensou? Ali fora, a um passo, Copacabana bramia. Canta a tua última canção, Copacabana! A moça fala, fala, fala. Na velha confeitaria, navio iluminado, o tempo recuou. E eu sou ontem, longe. Copacabana, Sacopenapã — tudo é mistério.