Julio Cortázar tem um conto que sai de um palíndromo – Satarsa. Um menino brinca de desarticular as palavras. No fundo, um escritor é um sujeito que pela vida afora continua a mexer com as palavras. Para diante delas, estranha esta, questiona aquela. O menino de Cortázar, que devia ser ele mesmo, virava a palavra pelo avesso e se encantava. Saber que a leitura pode ser feita de trás pra diante é uma aventura. 

E às vezes dá certo. No conto Satarsa, a palavra é Roma. Lida ao contrário, também faz sentido. Deixa de ser Roma e vira amor. Para o leitor adulto e apressado, isto pode ser uma bobagem. Para o menino é uma descoberta fascinante. Olhos curiosos, o menino vê a partir daí que o mundo pode ser arrumado de várias maneiras. Não só o mundo das palavras. É a partir dessa possibilidade de mudar que o mundo se renova. E melhora. 

Ou piora. Não teria graça se só melhorasse. O risco de piorar é fundamental na aventura humana. Mas estou me afastando da história do Cortázar. E sobretudo do que pretendo dizer. Ou pretendia No embalo das palavras, vou me deixando arrastar de brincadeira, que nem o menino do conto. Um dia ele encontrou esta frase: "Dábale arroz a la zorra el abad". Em português, significa: "O vigário dava arroz à raposa". Soa estranho isso, não soa? 

Mesmo para um menino aberto ao que der e vier, a frase é bastante surrealista. Um vigário e uma raposa. Na fábula e na vida real, a raposa é espertíssima. Será que come arroz? Não importa. O que importa é que a oração em espanhol pode ser lida de trás pra diante. E fica igualzinha: "Dábale arroz a la zorra el abad". Pois este palíndromo não só encantou o menino Cortázar, como decidiu o seu destino de escritor. Isto sou eu quem digo. 

Ele percebeu aí que as palavras podem se relacionar de maneira diferente. E mágica. Sem esta consciência, não há poeta, nem poesia. Como a criança, o poeta tem um olhar novo. Lê de trás pra diante. No castelhano, a brincadeira é o vesre. Falar ao revés. Em vez de dizer mujer, dizer jermu. Cheguei até aqui e não disse o que queria. Digo então que tentei uma série de anagramas com o Brasil de hoje. Quem sabe virando pelo avesso a gente acha o sentido?

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