Mas nem sempre se consegue fugir de uma tristeza que se infiltra nas alegrias convencionais do fim de ano. A grande cidade multiplicou o número de solitários e deprimidos. O cão negro ataca os mais sensíveis e não poupa nem os grandes homens, que conduzem o destino da humanidade.

Festa com data marcada começa e não dá em nada. Nem sei se é provérbio. Muito menos sei se é verdade. Diz o rifão, este, sim, é provérbio, que o melhor da festa é esperar por ela. Nada, pois, como a véspera, que dá asas à imaginação. Em seguida vem a realidade, que não é alada e, por mais benfazeja que se revele, fica quase sempre aquém da gulosa imaginação humana. Não é outra a razão porque dizem que os olhos são maiores do que a barriga. Se é assim no plano do apetite, que dirá no plano imaterial dos sonhos e das inefáveis ambições. Do desejo que não é físico, ou que não é só físico, mas passa além e é de fato metafísico.

Há nesta época do ano uma avalanche de bons sentimentos, que ameaçam nos sufocar, sobretudo depois que a sociedade de consumo multiplicou ao infinito sua loquacidade de papagaio. É compreensível a tentação, que também nos assalta, de fugir à voz geral, ao marketing e ao merchandising, mesmo pelo mau caminho do mais feio dos sentimentos ― o ressentimento. No caso brasileiro, há pelo menos uma atenuante este ano: é a recessão, que há muito deixou de ser uma ameaça para se tornar uma língua negra na praia do nosso datado otimismo. A manifestação de uma felicidade compulsória, ainda que de mentira, excita uma alegria de fachada, mais ruidosa que efetiva, ao mesmo tempo que espicaça escondidas dores e velhas nostalgias.

O sentimento convencional assinalado no calendário tende a se esvaziar e vem a ser apenas convenção. Poucos, muito poucos, têm a graça de um Francisco de Assis, que tinha ideias excêntricas e vivia de uma forma peculiar o ano inteiro, não apenas nos últimos dias do ano. Dele é que partiu no século 13 a ideia de reconstituir o nascimento de Jesus Cristo através da singela dramatização do presépio. Não satisfeito de só pensar nos pobres, de se dar por inteiro à pobreza, Francisco pediu aos poderosos que mandassem dar de comer a todas as aves do céu e a todos os bichos da Terra.

Sete séculos depois, a ecologia virou moda e ninguém sabe se há santos, nem o censo se incumbe de contá-los. É próprio da santidade viver no silêncio e no escuro, no mais recôndito anonimato. O Brasil precisa disto e de mais aquilo, dizem os tecnocratas que planejam o nosso infortúnio anual. Precisa, sim, mas é de santos, de muitos santos, clamou o papa João Paulo, por ocasião de sua recente visita. Se amanhã o Brasil vier a ser uma nação rica, próspera e até socialmente justa, como desejamos, nem por isto estará garantida a existência de santos. Muito menos estará assegurada a felicidade pessoal de todos os brasileiros.

A nação mais afluente do mundo, os Estados Unidos têm na Califórnia o seu estado de maior renda per capita. Pois é lá mesmo, na Califórnia, que aparece por esta época o maior número de pessoas infelizes ou desajustadas. Em nenhum outro momento são tão numerosos os casos de atendimento nos hospitais psiquiátricos. A legião dos infelizes cresce no momento em que se desenvolve a excessiva promoção do amor, da família unida e da paz entre os homens de boa vontade.

A experiência de profissionais da área emocional diz que 10% a 20% da população americana chora à noite, vítima de inconfessada infelicidade. A marginalidade, ocasional ou insanável, se torna mais acentuada no momento em que uma alegria de convenção se esconde por trás da linha de montagem dos bons sentimentos em série. Se é assim nos Estados Unidos, em particular na próspera Califórnia, também é assim em grande parte do Primeiro Mundo. As grandes cidades amesquinham o ser humano, na medida que excitam a sua emoção e não lhe oferecem uma forma palpável de conforto moral. Basta refletir no problema das drogas.

A fantasia de um Natal feliz em Nova York pode assim não resistir ao teste da realidade. Será então apenas um cartão postal colorido que a televisão hoje põe em movimento, com música e sonoplastia adequadas. Não digo isso para tornar mais sombrio o espírito de quem nesta hora já tenha no coração a sua penumbra, ou até as suas sombras particulares. Digo-o a título de consolo, para os que acaso se sintam solitários e superestimem a felicidade alheia. Quanto mais gente ajustada existir no mundo, melhor. O mundo precisa de gente feliz e alegre. A alegria é comunicativa e faz bem.

O ser humano não está compulsoriamente condenado à infelicidade. Para nós brasileiros, neste ano de recessão e de tantas razões de desânimo, talvez seja o caso de dizer que, felizmente, a prosperidade material não implica sempre bem-estar e ajustamento emocional. Nas sociedades mais ricas o “mal do século”, a depressão, alcança proporções alarmantes. Uma revista francesa calcula que cem milhões de pessoas por ano procuram o hospital em todo o mundo, sem contar os 200 milhões de deprimidos que não se internam.

As estatísticas são terríveis, mas a gente se perde diante dessa massa anônima sem rosto humano. Assustadora, por isso mesmo, é a cara da depressão quando estampada na cara de alguém com identidade individual. É o caso do escritor americano William Styron. Tendo passado por uma depressão quase suicida, Styron nos conta a sua experiência no livro Darkness Visible, traduzido entre nós como Perto das trevas por Aulyde Soares Rodrigues (Editora Rocco). A palavra “depressão” foi usada inicialmente pelo prof. Adolf Meyer, da Escola de Medicina da Universidade de John Hopkins. O mal que por volta de 1910 tomou este nome, segundo Styron mal escolhido, aparece em inglês já em 1303, como “melancolia”. A palavra vem do grego e quer dizer “bile negra”.

O deprimido é um pneu arreado. Desmotivado, não é boa companhia para ninguém e muito menos para si mesmo. É preciso, porém, não exagerar. Um pouco de estresse é natural nesta quadra do ano, em consequência da agitação e da sobrecarga emocional. Emocional e física também, por que não? As festas podem deixar uma sensação de vazio, ou impor uma nostalgia que olha para trás e nada vê pela frente. William Styron cita um bom número de escritores deprimidos até o desespero. Exemplos não faltam, mesmo entre os grandes líderes. Churchill convivia com a sua depressão, que chamava de “black dog”. O cão negro, como se vê, persegue as culminâncias, com predileção pelas pessoas mais bem-dotadas e mais sensíveis.

No Brasil, não são raros ao longo da história os casos de depressão entre pessoas notórias, artistas, escritores, ou até mesmo homens públicos com responsabilidade na liderança nacional. Ninguém está isento. Há exemplos também entre homens de ação e líderes das classes que até outro dia tinham orgulho de se chamar conservadoras ou produtoras. Sobre a depressão de Churchill, Carlos Lacerda escreveu O cão negro. A certa altura, admitindo a tese aceita de que Hitler era paranoico, teremos de concluir, diz Lacerda, que o mundo dependeu por alguns anos da agressividade dominadora de um maluco e da resistência que lhe opôs um maníaco-depressivo. Que isto sirva de consolo para quem esteja triste. A vida é boa. É tocar o barco para a frente! 

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