Se está dito no Livro que Deus descansou no dia sétimo, força é concluir que Deus se cansou. Por que não haveria também eu de me cansar? Até o mais enfadonho rame-rame acaba extenuante. Na outra ponta da alternativa, cansa a aventura, como cansa a patuscada. Tudo cansa. A ordem e a desordem. A folia e a mágoa. Cansa o ódio, que tem fogos acesos. Só não cansa o amor.

Não cansa? Cansa, sim, por mais que os poetas teimem em dizer o contrário. Mas poeta diz a verdade pelo avesso. Na cansó provençal, cansa o enamorado. Como na cantiga de amigo a coita tisna de fadiga a infundada esperança. Não correspondida, a canção de amor se avinagra na cantiga de escárnio. E também cansa o sarcasmo, como cansa a ironia. Só não cansa o amor a Deus. O místico amor, extremoso, desvelado sempre.

Pois também esse cansa. Tanto é que lutam os monges no claustro contra a acédia. O insinuante fastio da acídia, que amolecia até os monges no calor da fé na Idade Média. O véu de apatia que desmobiliza as almas e lhes sopra a demoníaca certeza de que tudo é vão. Tudo é enfaro e enfado. O tédio que sufoca e anula a linha do horizonte. Nenhuma perspectiva. Nem miragem. O seco vazio do spleen. Nada vale nada. Vezes nada, igual a nada.

Abafada, prenúncio de um inverno molhado, a atmosfera estimula o desânimo. Está no ar essa geral prostração. Fecha, lento, o sinal vermelho. Um vermelho, até ele, descorado. Tudo se concilia com o feriado interior que me decretei. Nada de crise. Nisso, maquinal, a mão liga o rádio do carro. Um samba de Noel, ou Assis Valente. A voz de Gal, quem sabe? A boa melodia do Brasil brasileiro. Mas o que o rádio verte é a própria crise.

Mais um bilhete: o país da impunidade é um capítulo do passado. Empenho das autoridades para o êxito do desate. A voz do locutor me chama de volta à realidade. Mas onde está a realidade? É o caos. Até que enfim, o caos! No mínimo a novela se embaralhou toda. O texto de Cândido Alegria está na boca do padre Otoniel. A fala de Hilda passou para Gioconda. E já, já, Murilo Pontes vai uivar pra lua como o Sérgio Cabeleira. Quem diria, o Brasil é uma novela!

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