Ah, minha filha, a crise foi dura. Foi, não. Está sendo. E o pior é que a gente não sabe quando é que vai embora. Cada um diz uma coisa. Esse pessoal do governo, não dá pra acreditar. Falam enrolado pra gente não entender. E o que a gente entende, vai ver, dá tudo o contrário. Um diz que é pau, é pedra. Outro diz que é pedra, é pau. A mentira está por todo lado, a começar lá em cima.

Também, reconheço que tem seu lado positivo. Claro, a crise. Nasci ouvindo falar na crise. Só que a gente podia esperar que passava. Essa agora, Deus me livre! É uma barra. Ah, o lado positivo, você pode duvidar, mas pensando bem, tem, sim. Lá em casa, por exemplo. O ordenado minguando, dispensei a empregada. Todo mundo me disse que eu não ia aguentar. Pois olhe: foi um alívio. Estava ficando na mão dela.

Danada de dominadora, punha e dispunha. Mandona como ela só. Trabalho depressa, num instante dou conta do almoço. Os meninos no começo estranharam. Agora estão adorando. A menina até que enfim aprendeu o caminho do fogão. Os meninos, são três com a menina, os meninos ajudam. Cada um lava o que suja. Se estou no trabalho, cada qual se cuida. Ainda ontem o mais velho me dizia que nunca pensou que fosse tão fácil fazer o lanche. Sou mãe, mas não sou escrava.

Viúva de marido vivo, cortei um doze. Falta de dinheiro é a pior coisa que existe. Eu não dormia, minha filha. Primeiro chá, depois bolinha, tomei tudo quanto é remédio. Sabe o que aconteceu? Aprendi a dormir menos. Hoje saio da cama com o sol. Aproveito o tempo. Costuro, bordo, lavo e passo. O que vier eu topo. Com a menina empregada, o dinheiro já não é tão pouco. A gente aprende a se virar. Se duvidar, está melhor do que antes.

O meu filho tomou jeito. O do meio, que só queria saber de vadiagem. Vai fazer vestibular. O outro aprendeu encadernação. E já está no computador. Eu sei, a crise está aí. Bate também na porta lá de casa, mas não entra. Você viu esse Dalai-lama? Disse uma coisa bonita. Coisa de oriental. A luta ensina. Aprendendo a gente melhora. E também vê melhor os outros. Ah, é isso mesmo. Compaixão. Eu até nem sei se quero que a crise acabe. Bendita crise, é o que digo.

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