O caso desse garoto Albino Carreira Feijó, 16 anos, que fez vestibular aí em São Paulo, demonstra que não há incompatibilidade entre os vários saberes. Craque em matemática e cobra em biologia, leu o Dom Casmurro e disse: “Aprendi muito com este livro”. A matemática ajuda o Machado e o Machado ajuda a matemática. Me lembrei do que ouvi quando era mais moço do que o Albino. Era o tempo em que se estudava latim.

Posto em dúvida o interesse dos estudos desinteressados, ignoravam que o latim é uma ginástica para a inteligência. O que importa não é o que o menino fará com o latim, mas, sim, o que o latim fará com o menino. O caso desse garoto paulista me deu vontade de telefonar para o Marco Aurélio. Ele sempre soube ligar tudo a tudo, da ema ao beija-flor.

Encontrei o Marco Aurélio aos 16 anos, em 1939. Era o ano do centenário de nascimento do Machado de Assis. O pai dele, Mário Matos, tinha acabado de publicar na Brasiliana um livro sobre o Machado. Inseparável do Amílcar de Castro e do Sette Câmara, logo descobrimos nossas afinidades. Eu estava deslumbrado com o Quincas Borba, lido dois anos antes. Era também o livro favorito do Marco Aurélio. Não. Para ele, era todo o Machado. De ponta a ponta, na ponta da língua. Era Deus no céu e o Machado na terra. E o Shakespeare.

Podem dizer que sou um homem de sorte. Neste caso, sou. Encontrar no limiar da vida um Marco Aurélio de Moura Matos. Um prêmio. Direito, literatura, história, tinha fome de tudo. E estudava filosofia com o peruano Wagner de Reyna. Línguas, sabia as banais (inglês, francês, italiano, espanhol). Lia e falava russo. Traçava um alemão desenvolto. Tirava o Goethe de letra. Em nossa última conversa lhe falei da tradução do Schiller pelo Márcio Suzuki. Por favor, não imaginem um cidadão enfarpelado e convencional.

Caráter sem jaça, mais que um humorista, um genial showman, o nosso Marco. Perguntem ao Millôr. Imitava o Chaplin, o Hitler. O Getúlio, nem se fala. Nascido entre livros, louco pela música, tinha tudo ao seu alcance. Íamos fazer o curso de Direito, mas fizemos muito mais. Fizemos o percurso inteiro de uma vida. Convidado para sempre, depois de dez anos de estoico sofrimento, Marco Aurélio partiu outro dia em silêncio, na maior polidez. Como viveu. Estava sereno e jovem, sem as injúrias do tempo. 17 de dezembro, dia de São Lázaro. Nesta quadra do Natal, me pareceu que de fato ressuscitou.

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