Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
RIO DE JANEIRO — Fiquei impressionado, impressionado é pouco, fiquei comovido com o velório e o enterro do Douglas. O irmão mais velho, Domingos, disse umas poucas palavras. Sua sóbria presença acentuava a solidão daquela sombria cerimônia fúnebre. Foi preciso pedir ajuda aos coveiros. Não havia uma única alma piedosa, uma só mão amiga para pegar uma alça do caixão. A televisão devia ter tirado o áudio, na hora em que o féretro entrou naquela sinistra gaveta.
Numa época em que todo mundo quer aparecer, descabelar-se em público, a família em São Paulo também se fechou no silêncio. O enterro solitário na cidade estranha falava por si. No deserto das grandes cidades, povoadas de rostos anônimos, ninguém conforta ninguém. Enterrar os mortos já não é obra da misericórdia. É uma exigência burocrática, que passa pelo IML e pelo papa-defunto. Não há encomendação do corpo, nem reza. Há fatura, atestado de óbito e autópsia.
Naquele momento ainda se podia contar com o testemunho do irmão Alberto. A garganta rasgada, mais um pouco e iria falar. Mas Alberto morreu, cercado pelo mesmo silêncio que sufocava o cemitério do Caju. Que é que deu nesses rapazes, santo Deus, para virem ao Rio armados de escopetas e granadas? Os vizinhos confirmam o pai: eles eram ligeiramente introvertidos. Tudo muito nebuloso. A mãe calada. Diz o pai que os meninos gostavam de eletrônica, de cinema, de bicicleta.
Sim, deviam gostar da Xuxa. Droga? Não. Bons alunos. E nada entendiam de armamento. Em que instante se deu então a ruptura? Tempos implacáveis, estes. Numa família de três rapazes, o pai industrial, a mãe dentista, dois deles são arrebatados por um vento de aventura tresloucada, como se tivessem recebido o script de um mau filme americano. O ato gratuito de Gide, quem sabe. A insensata busca de aventura, a qualquer preço.
E matam um pobre guarda que apenas lhes dirigiu uma pergunta. Ninguém suspeitava de que naquele sobrado de uma tranquila rua paulistana residia o satânico germe da violência irracional. Nenhum sinal no álbum de retratos da família. Vendo hoje os antigos olhos inocentes dos meninos, ninguém acredita. Se já não há crime e família, marginais e bons rapazes, então tudo é uma coisa só. E estamos todos ameaçados. Episódio macabro, teu mistério nos desafia. O silêncio dos dois túmulos pesa, cruel, sobre o Rio e sobre São Paulo.