Gênero aborrecido, o necrológio. Impõe-se o tom convencional. Baixamos os olhos, a voz, com a cara de circunstância. Apanhado de surpresa, por mais esperada que seja a morte, o coração, no entanto, permanece mudo. De espanto, de perplexidade, no tumulto de sentimentos e reminiscências, que é preciso afastar para continuar vivendo. 

Ninguém menos convencional do que Tarso de Castro. Há dias me disseram que ele estava salvo. Tinha feito um transplante de fígado. Desejei que fosse verdade, mas no fundo descri que Tarso pudesse viver com um fígado emprestado. Que fosse possível lhe salvar a vida com alguns generosos remendos. O sinal da rejeição lhe foi posto no berço guasco de Passo Fundo. O bem-nascido com a nostalgia do marginal.

Difícil, para não dizer impossível, trocar um pedaço de Tarso de Castro por alguma coisa que não fosse Tarso de Castro. Inteiro, na sua integridade feita, como tudo, de dois polos. O polo positivo e o polo negativo. Defeitos visíveis e qualidades nem sempre visíveis, sobretudo para quem o via de longe, ou o sofria de perto. Sonhos, atritos, delírios: Tarso se esbanjava. Tinha talento, garra, alegria. O rapaz boa-pinta veio ao Rio para ver e vencer. E fazia questão de ser visto. Não era homem da penumbra, ou dos bastidores. Queria ser protagonista.

O bicho-carpinteiro da inquietação nunca o deixou em paz. Tarso perseguia Tarso, sua vítima favorita. Dividindo o mundo em duas partes radicais, uma que exaltava, outra que execrava, sabia que a injustiça tem também um preço alto. Como a justiça, sua utopia. Podia chegar lá pela contramão. Tantas vezes passei cedo pelo bar Joia e lá estava ele, pai amoroso, com João Vicente.

Tinha um pacto de felicidade com a vida. Pouco importava que a vida não cumprisse a sua parte. Eu interpelava os astros: de quem foge Tarso de Castro? Quem persegue Tarso de Castro? Ele ria. E o riso apagava no rosto o vinco das noites boêmias. A vida jogada fora, num gesto de desdém e de rebeldia. Mas onde está a vida dos que a depositaram na poupança? Na vertigem com que vivia, no seu furor, havia, sim, um sinal de maldição. Sua morte nos punge como um remorso. Tantas imposturas, tantos vencedores! Adeus, Tarso.

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