O sol funciona esplêndido em cima da praia. Abre-se o espaço largamente. Custa admitir que a vida se cava em escritórios tristonhos, nas jaulas dos guichês, repartições, filas, cemitérios do homem.

Amo esta distância verde, este cheiro de sal, esta paz. Seria um absurdo mitológico se um submarino atômico surgisse à tona e nos destruísse, a nós que apenas pedimos um pouco mais de intimidade com a vida.

Dispomos aqui dos instrumentos essenciais a um momento de equilíbrio: a persistência do coração, o trabalho do fígado e dos rins, eliminando os venenos, a persistência do ar iodado, a água salgada, elementos suficientes ao mistério linear de viver e sentir. Não fosse uma gaivota faminta, nem perceberíamos este espinho interior a denunciar as vastas solidões que dominamos, sofrimento, pressentimento, aniquilamento.

Há pequenos vermes ocultos na areia para que a nossa tranquilidade não seja alarmante. Obrigações a cumprir, amores a sonhar, coisas a fazer formam figuras abstratas que se misturam, se deformam e se quebram. Baste o sol, baste o céu azul, baste a escura arraia da vida dormindo maldormida em nossas profundezas submarinas.

Penso em Ícaro às vezes, despenhando-se do rochedo a fim de legar ao mundo, segundo a poesia, um fracasso definitivo. Às vezes, nem penso: as nuvens me atrapalham o entendimento, os ventos me dispersam em outras paisagens, outras idades, já não sei quem sou, enquanto uma esquadrilha de aviões parece conferir o meu corpo, triste corpo, que aguarda os monstros do meu juízo final.

Hoje o homem vive simultaneamente em todas as partes do mundo. Dói-lhe o mundo inteiro como se fosse uma extensão sensível de seu corpo; os postes de telegrafia e de rádio são as células nervosas deste imenso organismo a transmitir-lhe impressões sob forma de notícias. A primeira página do jornal é o gráfico dessa vida nervosa suplementar, estampando diariamente a curva de nossas tristezas universais, de nossas esperanças ecumênicas, nossos receios, somando o mundo em nosso comportamento mental, e dividindo a nossa mal distraída atenção pelos quatro recantos da Terra.

O homem particular desaparece ou, pelo menos, cede uma grande parte de seus direitos aparentemente inalienáveis. Somos todos homens mais ou menos homens públicos. As mesmas vibrações percorrem os povos de toda a Terra. Nossa curiosidade e nossos interesses estão em todos os lugares, nosso ativado espírito de justiça não recua diante de fronteiras. Já não vivemos em nossa urbs limitada. Nossa segurança não depende de nós, mas de todos. Uma atitude tomada a milhares de quilômetros (um engano) poderá transformar violentamente o nosso plano de vida para amanhã. Já não podemos dizer: "Não temos nada com isso". Temos a ver com todo o mundo e com todos. Com o artista que morre num país distante e deixou uma obra aos vivos; com o político que morreu varado a tiros, e é preciso conhecer os motivos desse gesto; com o pequeno povo que se tornou independente depois de séculos de servidão; com a transferência de propriedade duma grande indústria.

Estamos interessados em tudo, envolvidos em tudo e em todos. Das experiências termonucleares às pesquisas sobre a dor reumática. Das multidões esfomeadas da Índia à menina brasileira que furtou um pão. Das reviravoltas na política do Congo às usinas de alumínio do Canadá.

A janela do nosso quarto se abre para todos os quadrantes. O olhar de toda pessoa responsável deve ser indiscreto. O homem indaga o mundo, olha as razões do mundo, fareja os motivos dessa ou daquela atitude, reflete sobre a vasta massa informe de acontecimentos, de situações estacionárias, de promessas, de mentiras. E olhando, indagando, farejando, refletindo, o seu interesse cruza-se com o interesse de milhões de outras criaturas que procuram um entendimento universal, de criaturas que buscam, não a própria segurança, a segurança de todos. Nosso destino é morrer. Mas também é nascer. O resto é aflição de espírito.

paulo-mendes-campos
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