Ganhava-se pouco, mas divertia-se muito no Comício. Numa dessas viravoltas da política nacional, um deputado entregou a Joel Silveira, Rafael Correia de Oliveira e Rubem Braga o capital para se fundar um semanário. A independência que prometeu ao trio diretor funcionou bastante bem durante algum tempo. O primeiro número saiu a 15 de maio de 1952, indo fazer agora treze anos, santo Deus!

A redação era a sala ampla dum vigésimo andar da rua Álvaro Alvim. Nela trabalhavam e brincavam (sobretudo brincavam) Rubem, Joel, Millôr Fernandes e, a partir de certa data, eu. Colaboradores mais assíduos eram Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, Lúcio Rangel, Tiago de Melo, Newton Prates, Luís Martins. Clarice Lispector, com o pseudônimo de Teresa Quadros, fazia a página feminina. Foi também Comício que revelou Antônio Maria e Sérgio Porto como cronistas, Pedro Gomes como repórter, e Rubem Braga como tesoureiro.

Dizíamos: "Aproveita enquanto o Braga é tesoureiro". A tesouraria era a gaveta dele. O sujeito chegava, o Braga abria a gaveta e pagava; o colaborador dizia: "Pera aí, Braga"; o Braga dizia "eh, eh"; depois dava mais uma nota; o sujeito agradecia e pedia um pouco mais; o Braga fechava a gaveta com estrondo e passava-lhe a chave.

No princípio a gaveta andava cheia de dar gosto; depois, o enchê-la ficava dependendo dumas missões externas do tesoureiro; quando a missão era bem-sucedida, o Braga entrava na redação como o caçador que vem para dividir a presa com o acampamento; depois o dinheiro sumiu e o Braga nem caçava mais.

Era uma revista alegre e meio maluca. Diretores e redatores chegavam cedo, cada um muito espantado com a pontualidade dos outros. Isso levava todos a comentários perplexos: "Aqui a esta hora, Millôr?! Que há contigo?", "Olha o Paulo chegando! Eu, hein!", "O Joel não deve andar bem de saúde: às nove horas ele já estava aqui!".

No expediente matinal escrevia-se pouco, mas falava-se muito, sobretudo o Joel, minto, sobretudo o Millôr, empoleirado no alto de seu cavalete. Rubem Braga falava menos, mas resmungava mais.

Almoçava-se pela Cinelândia, dedicava-se algum tempo a afazeres particulares, voltava-se lá pelas quatro, trabalhava-se até às cinco ou cinco e meia. Aí o Rubem olhava para o Joel, o Joel olhava para o Millôr, o Millôr para mim, eu para os colaboradores que já tinham chegado. Ninguém queria ser o primeiro. Havia uns dez minutos de hesitação, bocejos, suspiros, protestos contra o governo. Finalmente o Braga não resistia, levantava-se espreguiçando, e abria a geladeira preta: "Estou cansado: vou tomar um uisquinho". Tínhamos os nossos luxos.

Getúlio Vargas era o presidente. O preço do número avulso era de três cruzeiros, numa época em que a água no Leblon chegava a custar de cinco a dez cruzeiros a lata.

Vivemos 22 números. O número 1 vinha com uma entrevista do general Estillac Leal a dizer que divisão no Exército só havia na boca dos entreguistas. No número 2 protestava-se contra a apreensão do número 1, pois um capitão no aeroporto tentara impedir a remessa dos exemplares de São Paulo. No número 3 Joel Silveira dizia que o integralismo estava fazendo tricô. O 4 denunciava os boquirrotos da Câmara. No número 5, em seção não assinada, o Braga dizia: "É difícil convencer o Joel Silveira, que fica telefonando como um chato lá da oficina, de que a semana tem sete dias e não podemos 'mandar logo essa matéria' quando ainda estamos na quinta-feira. Não é possível trabalhar desse jeito". O número 6 trazia histórias escabrosas de petróleo e admitia que o parlamentarismo andava de vento em popa. No número 7 Gustavo de Carvalho contava como fez em 1912, contra o Mangueira, o primeiro gol do Flamengo. O número 8 contava que por mil e duzentos cruzeiros mensais milhares de comerciárias passavam o dia atrás do balcão. No número 9 os barnabés continuavam reunidos para pedir aumento. No número 10, a propósito da UDN, Pedro Gomes dizia que a eterna vi- gilância era ameaçada pela eterna transigência. O número 11 falava que o jovem deputado Jango Goulart queria dar sentido trabalhista ao PTB, ao que constava. No número 12 Ademar de Barros dizia ao repórter: "O Brasil precisa de um gerente, e com ele esta droga (que é o nosso país) vai para a frente ou se afunda de uma vez". O número 13 achava que perder eleições no Brasil, pelo menos no governo de Getúlio, era bom negócio. Otávio Mangabeira, no número 14: "Ou o Brasil reage ou apodrece de vez". No número 15 eu ajeitava uma matéria estrangeira com um pormenor que me tinha saído por completo da cabeça: aos doze anos de idade, Adlai Stevenson matou acidentalmente com um tiro uma prima de quinze anos. No número seguinte, Millôr dizia que o pirata era mais fácil de distinguir do que qualquer atacadista hodierno, por usar chapéu tricórnio, pano preto sobre o olho e gancho de ferro em vez de mão. No número 17 o Sr. Aliomar Baleeiro afirmava em entrevista:

O tubarão não se contenta com os lucros excessivos, as defraudações de impostos, a exploração dos consumidores e dos empregados etc. Ele tem sede de poder político e esperanças de conquistar o poder público como arma para o poder econômico. Como vive de vender e comprar, supõe que se compra tudo no mundo.

A revista ainda suspirou mais cinco números. Mas, enjoado do cemitério, fico por aqui.

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