Publicada, anteriormente, na Manchete, de 22 de abril de 1961, e no livro Homenzinho na ventania, Editora do Autor, 1962, pp. 132-139, em ambos com o título "O contágio". Posteriormente publicada no livro Cisne de feltro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 45-47.
Tinha onze anos e usava o primeiro uniforme de colégio, quando, alarmado, descobri a amante. Veio morar perto de minha casa uma amante. Até ali, o impacto da palavra vibrava em mim no retalho de conversas entreouvidas, na tímida suspeição das fitas de cinema. Não tinha posto meus olhos em amante de carne, não era capaz sequer de imaginá-la, a mulher que sofresse hora a hora o estigma: amante. A palavra imantada cristalizara-se em mim com suas pontas, seus reflexos. Mas agora passava a existir a criatura impregnada de seu fogo. Eu, eu fremia de pânico e desejo de acabar com a fraude da infância e abrasar-me. Pensar na amante, saber que ela se mirava no espelho, que se mostrava aos olhos de homens que não tinham amantes, de mulheres que não eram amantes, isso vinha a ser mais fascinante do que todo o sumo de minha vida.
Via, e não me cansava de ver, as jovens tuberculosas da cidade, mulheres magras que passavam as tardes nas varandas das pensões, contaminadas mas tranquilas, sem demonstrar uma consciência mortal (eu esperava) do horror que as consumia. Trocavam às vezes o tristonho roupão das horas quase todas por um vestido, deixavam as chinelas, coloriam a palidez do rosto, saíam para a rua, tomavam o bonde, sumiam dentro de edifícios reapareciam nas confeitarias, usavam xícaras de outras pessoas, retornavam às pensões antes de cair o sereno. Chegavam a rir no alto das varandas depois do jantar, e então, parando de entender o resto, eu respirava.
Eram as fronteiras da minha vida. E eis que vinha a morar perto de casa, na paróquia de Santo Antônio, entre outras casas de débil estilo normando, uma amante, a amante. As tuberculosas se simplificaram na familiaridade dos fatos consumados. Que morte poderiam carregar consigo, comparadas à amante? A palavra amante era de um contágio mais galopante que a apalavra tuberculose. Mas a cidade se recolhia cedo na cama, sem desconfiar da amante.
Escondi o segredo perigoso. Falar a outro sobre a amante seria amputar o meu gosto de saber a verdade nua. Nunca descrevi nada do que amo ou me assusta para ninguém; só depois encontro o jeito de denunciar o que se passa comigo.
Não me recordo de quando a vi pela primeira vez. Levei algum tempo construindo a coragem de vê-la de corpo inteiro, como quando a gente acorda com medo, e só aos poucos assume a ousadia de investigar todo o aposento. Do estremecimento inicial à miopia da timidez, eu a vi devagar, como um pintor sem jeito receia reformar num gesto a figura feliz. Tinha de ser devagar na província do meu abandono.
Um deputado era o amante da amante. Ao cair da tardinha, o automóvel reluzente pousava os pneus macios no calçamento alastrado de capim. Se eu odiasse o deputado, ele deixaria de ser o amante. Eu regressava do futebol, das construções, dos passarinhos, calçados de chuteiras, a cara em fogo, por um campo de flores amarelas. Se o carro estivesse, o bangalô ficava todo fechado, como casa vazia. Sozinha, ela gostava de debruçar-se no portão de madeira, olhando. E eu passava, olhando.
Era branca, imorredouramente limpa, e linda, e bem cuidada, e loura e de olhos alumiados, e de uma serenidade que se entrechocava aos emboléus com o fragor sensual que fazia dentro de mim a palavra. Amante. Pois clamava, até mesmo aos olhos de um inocente, uma dedicação vagarosa na face da amante, nos movimentos meigos, nos vestidos bem passados, nos pés cingidos de sapatos leves. Só os quadris eram um pouco desenhados demais para as mulheres familiares da época.
Só a vi assim, correta, singela, concisa. Não perambulava pelas ruas como as tuberculosas, não tinha amigos, não falava aos vizinhos. Ela estava certa de que trazia na alma um contágio.
Mas sorria para mim. Depois de algum tempo, começou a sorrir quando eu passava, e pensei, pensei com o tumulto que pode contaminar o corpo e o espírito, que a amante iria ser a minha amante. A mulher mais bela ia ser a amante do menino soturno.
Ai, ai, de que adianta um menino? Não era um menino, era um homem, e um homem quer morrer. As ventanias me arrastaram, dispersando-me nas várzeas, as tempestades me espatifaram, os crepúsculos me sufocaram, uma lua doente me envelheceu.
E ela me sorria, doce, doce, como as amantes não sorriem. Como sorriem as águas escondidas. Estava me tornando menino outra vez na doçura sem malícia do sorriso. E uma tarde ela me pediu que entrasse, e eu entrei de chuteiras. E ela passou a mão nos meus cabelos e me deu um doce de leite, que eu comi, depois de responder, cara afogueada, que meu nome era Pedro. A amante queria ser minha mãe.
Minha primeira complicada compaixão pelas mulheres.