Nós, os mineiros, que vexame! Nossa delegação, com duas e não sei se três exceções, era uma eufórica e alienada malta de moleques. Queríamos a democracia sem abrir mão da nossa gratuidade, espantosa, e fruto verde dos nossos desajustamentos de origem. Devíamos ser umas crianças intoleráveis, mas os outros nos tratavam com bastante complacência, principalmente o Mário, que aturava com afeto a nossa incapacidade de conversar a sério, aderindo sempre.
Quanta palhaçada! A começar por mim. Apostei que arrancaria lágrimas duma quase veneranda senhora portuguesa, em um quarto de hora, versando a seu lado sobre o tema: sinos ao entardecer nas aldeias de Portugal (que eu nunca tinha visto nem ouvido). Ela entregou os pontos em cinco minutos; foi tão fácil que não quis receber a aposta.
O pior foi quando um companheiro nosso, num acesso de lirismo e loucura escocesa, agarrou nos braços, como um menino, o grande e pequeno Monteiro Lobato, e saiu com ele em disparada pela avenida São João. Lobato, possesso, bradava: "Pusilânime!", e o nosso amigo tentava explicar-lhe que estava apenas realizando uma (complicada) aspiração de infância: carregar no colo o mágico do seu mundo infantil.
Osvaldo Alves chegou atrasado e preferiu ficar conosco no City Hotel, onde não havia lugar para ele. Tinha cama sobrando, e de manhã, ao entrar o café, o romancista se escondia dentro do armário. Mas uma noite ele chegou de antenas pifadas, indo direto para o armário, onde dormiu muitas horas e ressuscitou entrevado.
Houve depois uma fabulosa boca-livre na casa do pintor Lasar Segall. Murilo Rubião já era um contista do extraordinário, de elaboração ralentada, castigada, não porque o torturasse tanto a forma, mas porque sempre pretendeu captar as verdadeiras ressonâncias humanas de uma história. O Murilo estava sorumbático durante a festa, desligado como os seus personagens, e bebia muito devagar. Era o meu companheiro de quarto. Retornamos ao hotel desafinados, eu insatisfeito porque a noite estertorava em minhas mãos vazias, e ele… sorumbático. Primeiro, expulsei o gato do quarto. Morava no hotel um gato anão, anão e neurótico, que passava o tempo todo espreitando, agarrando e comendo um passarinho invisível.
Rubião vestiu, muito distinto, o robe por cima do pijama e perguntou se a luz me incomodava. Respondi que sim, mas não tinha importância, eu estava apagado. Ele muniu-se de caneta e bloco e começou a lavorar. O homem aí (calculei) tem um conto enrolado dentro dele. In the heart or in the head? Shakespeare também não soube responder a este enigma.
Lá pelas tantas, acordei com o gato doido pegando passarinho em minha barriga. Era coisa do Sabino, é claro. Rubião continuava lá, aureolado pela claridade do abajur, castigando, pigarreando, amassando papel, alisando sua calva mais bonita que a de Flaubert. Dormi logo, depois de ter depositado o anão no quarto do Otto, e acordei quando os paulistanos já tinham tomado um milhão de providências. Rubião ia de embalo, pálido e sereno, como quem fez a sua obrigação. Sobre a mesa pousava apenas uma folha de papel azulado; o resto do bloco estava rabiscado e atulhado dentro da cesta. No alto do papel vinha escrito: "O convidado". Abaixo: "Conto de Murilo Rubião". Dez linhas riscadas, ilegíveis. Depois, assim (fim do conto: o convidado não existe). Só Rubião chegara a essa desagradável conclusão depois de toda uma festa perdida e horas de luta.
Mais tarde, no Franciscano, disse-me que não achara o fio do conto (nem esperava por isso, tão depressa), mas o essencial estava no papo: o convidado não existe.
Bota aí um Amazonas de águas passando por baixo da ponte, meus encontros espaçados com o Rubião (e o convidado, sai ou não sai? – Acho que sai, acho que sai) e viagens e óbitos e guerras e o Vinicius noivando de novo e o Chico virando homem, uma inundação de acontecimentos. O convidado sai, Rubionis? Acho que sai, acho que sai.
Quando os americanos desceram na Lua pela segunda vez, não aguentei mais: fui ali na agência nova do Leblon e passei um telegrama: "Murilo velho o convidado existe o que não existe é a festa abraços Paulo". Como não respondeu (nem por telegrama, nem por carta, nem por telefone, nem, mineiramente, por mensageiro amigo), retornei ao brejo da dúvida: o convidado existe? Pois anteontem um amigo comum telefonou para dizer que me trazia de Minas uma sensacional surpresa. Eram treze laudas e meia datilografadas em espaço triplo: "O convidado" – conto de Murilo Rubião.
Vinte e seis anos depois! Li como quem bebe um chope depois de percorrer a avenida Brasil, querendo chegar ao fim para pedir outro chope ou ler de novo. E vi, com alívio, mas também com o amargor que transmitem os admiráveis contos rubiônicos, que o convidado, de fato, não existe.