Era um jornal de Minas, comprado de madrugada ali na Galeria Cruzeiro. Ler de vez em quando jornal de Minas é a dignidade final de um mineiro que emigra. Nem todas as coisas importantes são registradas nos matutinos e vespertinos daqui. A morte do nosso dentista, o crime de um garçom do bar que frequentávamos, a posse do nosso vizinho em um alto cargo, só encontro nos jornais de Belo Horizonte. Os jornais do Rio me informam sobre gente universal e nacional. Os de lá me falam sobre pessoas municipais, mais perto do coração.

Entretanto, a notícia que me despertou atenção vinha da Noruega. Trata-se de outra virtude específica dos jornais de Minas: registram com destaque acontecimentos que entre nós se sepultam no fundo da cesta. Era sobre Knut Hamsun, romancista que encheu toda uma temporada de minha iniciação literária, e que agora é acusado acerbamente de haver colaborado com os nazistas. Não conheço devidamente o fato, reservando com honestidade minha justa indignação. O telegrama, porém, não ficava limitado a informações sobre o processo de que foi réu o autor de Fome. O repórter que lhe falara quisera saber também por que motivo o ilustre romancista, possuindo uma vasta e confortável casa, havia se recolhido a um asilo de velhos. Diga-se de passagem, que Knut Hamsun atingiu a provecta idade de 88 anos. Comprovando um dito de Wilde, essa pergunta, insofismavelmente discreta, deu origem a resposta indiscretíssima: Knut Hamsun temia a “aparição” de sua esposa. Não fora para o abrigo tangido de explicável ternura por seus colegas de decrepitude. Não se dirigira para lá na convicção de que o seu lugar era aquele mesmo, por mais que o favorecesse a riqueza e o lisonjeasse a glória. Ingressara no asilo por medo de mulher, temendo que ela voltasse a infernar a tranquilidade a que tinha direito por tempo de serviço. Adiantou ainda ao jornalista que sua senhora era, para ele, a encarnação do espirito do mal...

Para dizer a verdade, não lamento a sorte de Knut Hamsun. Em idade parecida, visitado por outro jornalista, o filósofo Santayana, durante a fase mais terrível da guerra, recusou-se a prestar qualquer declaração, alegando ter-se desinteressado dos problemas da terra, absorvido que estava com a chegada próxima da eternidade. Esse destino era bem mais infortunado. Com o pé direito neste mundo e o esquerdo no outro, Santayana transformara-se num desventurado anjo sem asas, já liberto das paixões e inquietudes da vida sem ter adquirido a plenitude perfeita que esperamos na morte.

Deus que nos livre de acabar assim. Deus que conserve nossas virtudes e nossos erros, não deixando que o tempo depositado em nossa cara e em nossa alma faça de nós uma estátua de pedra, uma coisa triste a beira da morte. É mil vezes preferível o destino de Knut Hamsun, que chega perto dos noventa anos apavorado pela possível aparição de uma senhora, como qualquer um de nós de 20, 30 ou 40. Se nos for dado viver excessivamente assim, que o vento acariciando nossas barbas brancas e longuíssimas não seja um sopro assustador do outro mundo. Que seja um vento da terra trazendo consigo as inseguranças da terra, o amor da terra, as mulheres da terra. Por mais funestas que sejam, acho que é melhor.

paulo-mendes-campos
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