Continuamos hoje as lições para o homem gordo e rico que, dispondo de boa biblioteca, não gosta de ler, mas que deseja obter prestígio social com a cultura dos livros. Como dissemos da vez passada, o segredo está na primeira frase de todos os volumes.

Pela primeira frase, o senhor conseguirá descobrir também o método literário do livro, o processo, a técnica. Vejamos: Ariel ou a vida de Shelley, por André Maurois. Primeira frase: “Em 1809, o rei Jorge III de Inglaterra pôs à testa de Eton o dr. Keate, homenzinho terrível, que considerava a sova de pau como estação necessária no caminho de toda perfeição moral”. Que observa aí? A vida de Shelley indica biografia, o cheiro, entretanto, é de romance. Depois de algum treino, o senhor será capaz de formular a palavra composta que nomeia esse gênero: biografia-romanceada, uma vez que romance-biografado fica muito esquisito. Contudo, recomendo prudência para as conclusões dessa espécie.

A primeira frase pode revelar, às vezes com precisão impressionante, о temperamento e convicções do autor. Em casos especiais, até acontecimentos da vida do autor. Olhemos este livro de contos de D. H. Lawrence. (Com os livros de contos é sempre aconselhável ler o início de todos, para se fazer uma ideia geral). Dos oito contos de Lawrence contidos neste livro, seis deles contêm a palavra “mulher” ou um nome próprio de mulher, na primeira frase. Aí está premissa. Consequência: quem diz mulher, diz sexo. Conclusão: Lawrence foi um espírito preocupado com as mulheres, com o sexo. Outro livro de Lawrence, O amante de Lady Chatterley (Repare nos títulos!), inicia-se com essa afirmação: “Vivemos em uma idade essencialmente trágica”. Consequência: esse homem se preocupava com o sexo e as mulheres, mas não um leviano. Conclusão: D. H. Lawrence deve ter se metido em complicações com o povo e com a Justiça da Inglaterra.

Outra experiência. Assim começa a Sinfonia pastoral, de André Gide: “A neve, que não cessou de cair esses três dias, bloqueia as estradas”. O que se pode concluir daí? Nada, quase nada de apreciável. O senhor apenas assinala que esse André Gide provavelmente é francês. Como não consegue deduzir nada, afirme: “André Gide é desnorteante, não há como pegá-lo”. E, lembrando-se daquela neve obstinada, acrescente sem compromisso: “Acho demasiado frios alguns de seus livros”. Se algum enjoado perguntar quais, o senhor — caso não haja lido as providências orelhas — deve dizer: “Com exceção da Sinfonia pastoral, posso dizer que todos”. Como para os alimentos na ciência da nutrição, o conceito de “frio” ou “quente” para a ciência da literatura é puro subjetivismo.

Quando da primeira frase não for possível tirar muito não se atrapalhe. O príncipe, obra célebre de um escritor italiano, Maquiavel de nome, principia assim: “Todos os estados, todas as soberanias que têm ou tiveram autoridade sobre homens, foram ou são repúblicas ou principados”. Vê-se apenas que se trata de um livro que fala nas coisas de governo. Vê-se também que o autor usa de um tom que tanto pode ser experiência do assunto como autossuficiência. A obra é famosíssima, decida-se pela experiência. E use adversativas vagas: “O príncipe, não obstante tudo, é de uma sabedoria inigualável. No Brasil, exceção talvez do sr. Otto Maria Carpeaux, ninguém terá a petulância de lhe perguntar o que significa aquele “não obstante tudo”.

Muitas vezes, a primeira frase ilustra o estilo do autor. O vermelho e o preto: “A cidadezinha de Verriéres pode passar como das mais bonitas de Franche-Comte”. O senhor não descobre o gênio nessas palavras, mas, informado de que Stehdhal foi mestre da arte de escrever, assinalará nele o extremo despojamento. Esse escritor, que lhe parece medíocre de graças na expressão, apenas sustentava ser necessário encontrar formas de estilo tão precisas e simples que, refletidas, não pudessem ser contestadas.

No capítulo de estilo, entretanto, atenção. Um grande estilista português, faleci- do em 1900, pôs essa frase simples e pequena no começo de uma narrativa. “Estamos no mês de maio — e convém falar de rosas”. Não ache despojamento no estilo de Eça de Queiroz. Por quê? Porque o Eça se submete a uma lei geral mais forte que a exceção: era português. Todos os escritores portugueses, dos menores aos altíssimos, escrevem em frases redondas, bonitas, embaladoras. É um gosto lê-los, mesmo quando não têm uma só ideia na cabeça.

Em se tratando de autores d’além-mar, elogie a sintaxe lusíada. Querendo brilhar mais, diga que as diferenças sintáticas entre Portugal e Brasil já enunciam por si a nossa independência de espírito. Uma sentença como essa, lançada ao acaso num cocktail, garante-lhe por toda a eternidade os louros de filólogo. 

Pergunta-me o senhor pelos clássicos. Não se incomode com eles. Como ninguém os leu (exceção de uns velhos que nem mais falar conseguem), já é atestado cabal de cultural elogiá-los. Aprenda os nomes das obras clássicas e afiance que em toda a literatura nada existe que se lhes compare. Se são romanas, é preferível citá-las em latim. Se o senhor tem o cinismo dos vencedores, cite os gregos em grego. Dá algum trabalho decorar, mas vale a pena: renome de humanista garantido. No mausoléu (quem sabe?), algum amigo terá a lembrança de gravar uns versos de Eurípedes. É a sua glória ultrapassando a morte. Seu nome será lembrado nos cafés: “Um grande humanista”! Se nasceu em Minas Gerais, está dispensado dessas amolações: todo mineiro, ao estender as mãos para a luz, recebe o diploma de humanista.

O humanismo tem duas inestimáveis vantagens: referência garantida num rodapé do sr. Tristão de Ataíde e possível eleição para a Academia Brasileira de Letras. Ambas as coisas são preciosíssimas. A referência conquistará para seu nome a simpatia dos católicos liberais. Quanto à Academia, pejo-me de dizer a evidência: é a imortalidade, é ser igual de Machado de Assis, é participar do sodalício dos fabulosos.

Falemos de autores brasileiros. Não obstante a aparência em contrário, é o capítulo mais difícil. Seu risco é maior. Grife nos fundos do espírito esta observação: não se refira nunca aos autores que realmente leu. Desmancharia nosso esforço. Na mocidade o senhor deve ter lido alguma coisa. Compreendo, o coração dos moços... Dificilmente Bilac teria escapado a seu entusiasmo. Alencar, Macedo, máximas do marquês de Maricá talvez, Paulo Setubal.... Não comente tais autores. Por mais que lhe coce a língua, permaneça em silêncio, ou diga com ar superior e misteriosamente afetado: “Bilac? Nunca li uma só linha desse rapaz”. Não faltará quem ache e divulgue o irresistível espírito desta frase. Se o tema é Alencar, confesse de jeito oblíquo: “Não sei quem é”. O resultado é certo: o senhor é genial. Desobedecendo a meu conselho, por mais que se empenhe, acabará deixando escapar uma opinião sincera. Evite isso, meu velho.

Às vezes, o livro nacional não apresenta dificuldades. Aqui temos a primeira frase de um romance: “Levantei-me há trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente”. Conheço o autor. Chama-se Graciliano Ramos, um homem direito, um escritor direito, mas muito pessimista como o senhor está vendo. Este conto deste outro livro se inicia com um simples “Boa tarde”. Conclusão: o sr. Marques Bebelo prefere o cotidiano ao infinito, ou, em linguagem mais bonita ainda, o tempo à eternidade. Outro romance, Mundos mortos, de Octavio de Faria, o primeiro de uma longa série que se chama a Tragédia burguesa. O início é este: “Ivo tinha feito as suas orações da noite, mas ainda não adormecera”. Esta, é fácil e merece do senhor uma palavra definitiva: “Todo o sentido da Tragédia burguesa reside na advertência evangélica: Vigiai e orai”. A profundidade de sua crítica lacônica seria insondável. 

Terminando, advirto-lhe que o exercício é tudo. A perfeição vem depois. Conheço indivíduos que usam do método com grande inteligência e não menor eficácia. E, em geral, não são ricos. São cultíssimos, mas lhes falta, a fim de obter prestígio integral, os dinheiros que o senhor possui. Quando tiver prática, verá como são inferiores os seres que perdem tempo a ler livros e mais livros. Sua superioridade sobre eles será alucinante e secreta. Se o acham abatido pela manhã, não confesse suas vitórias viris: diga: “pudera! passei a noite toda relendo Balzac”.

Aplique-se, repito. Quando estiver experiente, terá arrepios à simples leitura da primeira frase do Ateneu: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu”.

Só o gozo de pensar que há pessoas que leem (algumas até releem) um romance como Dom Casmurro! Veja a primeira frase: “Uma noite, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu”. O personagem, vê-se, não é moço, tem a polidez dos velhos. O fato de ter sido à noite sugere que não tem família. Morar em Engenho Novo era naquele tempo, fugir. Ter ido à cidade, revela, entretanto, umas nostalgias da sociabilidade. O título do livro nos leva a desconfiar que esse personagem é o próprio Dom Casmurro. Conclusão: personagem misantropo que não leva muito a sério a própria misantropia. A obra, portanto, dada a situação do personagem, deve ser a história do desengano que tornou esse homem solitário. Método: retrospectivo, aquele em que as amarguras antigas se adoçam na melancolia da velhice. Estilo: concisão, amor pela ordem. O local e a época aproximada são evidentes. Humor evidente: aquele “de vista e de chapéu”... Adianto-lhe, além disso, que Dom Casmurro foi enganado pela mulher. Como? Ah, isso é o pulo da onça.

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Nota: A primeira parte da crônica chama-se "Consulta e receita", e está publicada aqui no Portal.

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