13 out 1956

Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa)

Periódico
Manchete, nº 234
coluna: Conversa Literária

Porque esse livro conta uma história que ainda não ouvíramos, que precisávamos ouvir, uma história que agora se torna impossível imaginar não existindo; porque devemos escutar uma história ao amanhecer, outra ao meio-dia, outra ao cair da noite; uma história na infância, outra ao abrir-se das luzes e das sombras da maturidade, outra quando um farol no golfo escuro decidir o caminho da velhice; porque há uma história no princípio, outra no meio, outra no fim do mundo; porque as três histórias são uma única história: os enredos do homem com sua força e seu medo, e a mulher com sua fragilidade e sua coragem; porque esse livro repete a parábola da vida humana sobre a terra e nos molha no frescor das primitivas vegetações terrestres até aclarar-nos ou ofuscar-nos em definitivas indagações da consciência; porque os homens são um único homem, e um único homem são todos os homens; porque Riobaldo esteve na Grécia, no castelo que preparava a guerra santa, na grande revolução libertária, no sertão de Minas entre os jagunços, e Riobaldo está a meu lado; porque a metafísica de Riobaldo percorre os tempos do mundo de ponta a ponta; porque Riobaldo é a ação que se contempla e o pensamento que sai armado cavaleiro;

porque a invenção desse livro é constante como os movimentos da natureza e as inquietações do pensamento, nessa reciprocidade que faz o homem patético perante as vagas do oceano, e fria e inapelável a órbita das estrelas;

porque filosofar é a solidão do homem anônimo e, no entanto, através da solidão este anônimo comunga na filosofia universal; porque só o exercício do sofrimento pode abrir esperanças ao pensamento de Riobaldo; e o pensamento de Riobaldo vai, perdido e achado, como um bando de homens armados através do sertão;

porque essa obra de arte, generosa como a fertilidade do solo, indo não sei aonde, onde quer que o espírito a leve, tem a armação matemática com que se desenhou a harmonia do templo em louvor de um espírito sem forma, além de todos os cálculos; porque sempre, acima da sintaxe estruturada, há de soprar o vento do espírito – a fim de que as contradições do nosso destino se realizem;

porque todas as partes desse livro cooperam entre si e aspiram a um fim; porque todas as suas figuras cooperam entre si e aspiram a um fim; porque seus hipérbatos, pleonasmos, anacolutos, anástrofes, idiotismos, prosopopeias, hipérboles, perífrases, metonímias, sinédoques, cooperam entre si e aspiram a um fim; e o fim a que aspiram é o entendimento e a denúncia dos homens; para que estes não continuem matéria de escândalo mas ponto de partida à vida comum, o amor comum;

e ainda porque nesse livro se repetem a perplexidade das lendas mais antigas, o bem e o mal dos mais velhos humanismos; "eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza"; porque "quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo?"; porque esse livro funciona em qualquer página que o abrirmos sendo composto de círculos concêntricos;

porque o ritmo é o comentário que o autor faz as suas palavras, sua personalidade: e porque nesse livro o comentário é de um movimento amplo e de uma iniludível vivência;

porque Riobaldo viu, ouviu, cheirou, provou da terra e dos corações; porque se integrou ele nas apreensões de seus sentidos, dando uma medida de beleza e verdade às especulações;

porque as regiões compõem o mundo e o definem, como o tecido celular define o organismo;

porque o pouco que sabemos, esse livro ordena e nos ensina;

porque o Brasil existe; porque os brasileiros existem;

porque seguimos todos através do grande sertão, e aos poucos nos distinguimos no lusco-fusco do mato;

porque um livro como esse é guardado para sempre;

eu o louvo com modéstia e espanto.

paulo-mendes-campos
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