O jovem P. alimentava desde a infância o propósito de ir à Europa. Menino, impressionou-se com um biscoito que fazia sua avó, e que se chamava “biscoito europeu”.

Uma tarde, quando olhava umas pombas ciscando despreocupadas na rua do Rosário, ele decidiu: tinha chegado o momento de embarcar. Procurou uma agência de vapores.

― O senhor pode me informar quando há navio para a França?

Perguntou como se nunca tivesse feito outra coisa, senão ir à França. Agitava-o por dentro, no entanto, um vago heroísmo. O mocinho atrás do balcão correspondeu à naturalidade. Cordial e rápido, via-se que achava muito comum uma pessoa viajar para a França.

O navio ia partir dentro de três semanas. Metendo-se em um ônibus, P. respirou com satisfação o vento que soprava do oceano sobre a praça Paris. Pungia-o uma saudade invertida das coisas que ia vendo: a igreja de Nossa Senhora do Outeiro, a estátua do Almirante Barroso, a praia do Flamengo, a amendoeira do morro da Viúva (hoje desaparecida), o busto de Pasteur (hoje mudado para outro local) e a praia de Copacabana, onde morava e amava de vez em quando.

Passaram muitos meses. P. não tinha seguido para a Europa por causa dos papéis. Andava o dia todo procurando arranjá-los. Daqui mesmo, de informações e livros sobre, já conhecia Paris melhor que Francis Carco, Charles-Louis Philippe, Léon-Paul Fargue, e não só Paris, toda a França, toda a Europa, inclusive Portugal. Sabia o bistrô mais barato, conseguia de olhos fechados seguir pelo Boulevard Saint-Germain-des-Prés, atravessar a Concórdia, ganhar ruas escusas dos Champs Elysées. Tudo era inútil. A burocracia continuara cruel. Uma vez, no Ministério da Fazenda, levando pela sexta vez um requerimento que sempre estava errado, conseguiu dar entrada no mesmo. No dia marcado para vir buscá-lo, um senhor calvo atendeu-o:

― O que deseja, cavalheiro?

P. estendeu-lhe um cartãozinho do protocolo. O funcionário sorriu e lhe falou no ouvido:

― Está vendo aquela senhora de cabelos brancos? Pois envelheceu estudando um processo idêntico. O requerente já morreu, mas não contamos nada para ela. O senhor compreende, naquela idade avançada isso poderia ser perigoso.

P., dado a encontrar razões para a adversidade, compreendeu que o governo, a sociedade, o Brasil, tudo fariam para que ele não viajasse bruscamente para a Europa. A rápida mudança de temperatura e de civilização poderia lhe fazer mal. Sorriu verde-amarelo, comovido com os cuidados da pátria.

Os papéis andaram um pouco. Um dia, instruído por um boy, entrou pela porta de uma repartição. Atrás dessa porta existia um corredor infinito, cheio de outras portas, e em cada porta um cachorro enorme fantasiado de contínuo. Aproximou-se cauteloso. Humilde, estendeu ao primeiro cachorro uma ficha do protocolo. O cachorro latiu, mordeu-lhe a perna, dizendo-lhe em francês que esperasse a volta da lua. P. esperou em pé, fumando muito. Quando voltou a lua, a porta se abriu e uma linda moça, morena e suave, perguntou-lhe:

― O senhor está esperando o quê? 

P. achou muito bonita a construção sintática e respondeu: 

― Quero ir à França.

― O senhor vai ter um pouquinho de paciência e esperar para falar com o Diretor.

Esperou algumas horas. O Diretor era um hipopótamo, que lhe cuspiu primeiro na cara e lhe disse:

― O senhor quer ir à Europa, não é? O que eu tenho com isso? Os negócios da Europa estão a cargo do Diretor Geral.

Na sala contígua, horas depois, o Diretor Geral era um jacaré, o recebia, dentro de um vasto aquário. P. expôs o seu caso. O jacaré deu uma gargalhada, como se fosse um desenho animado ou um sonho, e lhe falou:

La France? La femme francaise est merveilleuse

Dito o que, o jacaré contou a P. vários episódios imorais de sua vida. Felizmente P. sabia muitas anedotas pornográficas e contou-as ao Diretor Geral. Ficaram muito amigos. O papel foi despachado e P. foi à França.

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