Uma vez, uma senhora perguntou ao Tímido Esteta:

— O sr. de vez em quando não sente nostalgia do convento?

— Muita. 

— E não tem vontade de voltar? 

— Não: eu sou da farra.

“Eu sou da farra” vem assim com uma voz sumida de Lamartine Babo em noite de neblina, é como quem diz: “Eu sou um anjinho”.

A convicção de seus amigos, seus inumeráveis amigos, é uma só: o Tímido Esteta é a criatura mais surpreendente do Rio.

Não chegou a tomar ordens superiores. Aprendeu foi muito grego e latim. O Tímido Esteta diz versos eróticos de Anacreonte com a mesma desenvoltura com que o médico e escritor recita as ricas rimas pornográficas de Fernando C. Pessoa. Do Seminário, o Esteta trouxe ainda o seu jeitão litúrgico e pastoral e a certeza da ressurreição da carne, certeza que guarda no coração como uma aurora incorruptível. Não se pode compreendê-lo sem o seu catolicismo, sua fidelidade ao Papa.

Algumas vezes, ele desaparece. Foi para Florença. Está com o Joãozinho da Goméia fazendo macumba em Caxias. Está dirigindo uma estação de rádio em Florianópolis. Trabalha como operário em uma fábrica de Bangu. Foi visto entrando agarradinho com uma crioula enorme em uma gafieira da praça Tiradentes. Fundou uma companhia de seguros. Está em retiro espiritual no Mosteiro de São Bento. Está dando a volta ao mundo em um barco de pesca dinamarquês. Foi passar uns tempos na fazenda do Ugo Borghi.

De volta à circulação, permanece hermético: “é a vida, velhinho, é a vida, que não é sopa”.

Os fãs das virtudes literárias do Esteta reclamam seus artigos. “Não tenho escrito porque não tenho máquina”. Se alguém lhe empresta a máquina por um mês, durante quatro semanas os ensaios do Tímido cintilam nas revistas e suplementos literários, eruditos pra cachorro, harmoniosos como esculturas.

Os convites começam a chover. Todos querem a companhia do Esteta. Que mal responde a tanta cordialidade. Os mais espertos criam facilidades: “não é preciso convite; tens um talher cativo lá em casa; bem sabes que a patroa vive reclamando a tua presença”.

Às vezes vai, às vezes não. Às vezes conversa, às vezes pega da estante o Virgílio e fica viajando a tarde inteira. Vez por outra, em casa do Aficionado, ao compasso do trompete pungente de Louis Armstrong, a sala cheia, o Tímido dança o seu balé carlitiano. Porque o Tímido tem o lirismo de Charlie Chaplin. Aprender isso é desvendar um terço do seu segredo: o poeta. Os outros dois terços são o Cristo e o pobre. O Evangelho, a poesia e a pobreza fazem a fortuna do Tímido Esteta.

Há que vê-lo também esportista, envergando sua jaqueta rubro-negra, seu gorrinho rubro-negro, transfigurado nas partidas do Flamengo. Pelo menos, dois filósofos no mundo adoram futebol: Georges Santayana e ele.

Frequentemente é visto parado em uma esquina, contemplativo. Que fazes aí? “Estou procurando emprego”. Acha-os, mesmo assim, com facilidade. Mas não os conserva. Um mês ou dois, ele implora demissão. E vai beber batidas em botequins misteriosos de nomes muito bonitos: O Corredor Polonês, A Tenda dos Três Patetas, A Bola de Fogo, O Farrapo Humano. É o único sujeito que espeta no Farrapo Humano. Amigos da hora incerta é coisa que nunca faltou ao Tímido.

Uma das amizades maiores do Tímido Esteta é a do Gigante. Quando o Gigante recebe seus vencimentos de procurador, os dois emendam três dias e três noites, com táxi à porta de todos os bares e boates.

Uma das últimas vezes que vi o Tímido Esteta, com um blusão colorido, foi no Carnaval. Encontrei-o em frente do Municipal, já enjoado das momices profanas dos brancos, anunciando que ia para a praça Onze. É muito difícil ir lá — ponderei — que condução você vai tomar? O Tímido ajeitou os óculos, meteu os peitos frágeis em um bando improvisado de foliões, murmurando para mim: “Vou de cordão”.

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