Abro a porta, fecho a porta, da rua, do apartamento, do quarto. Não consigo dormir. Seria bom apagar o pensamento, romper o fio, ou simplesmente interromper-me um pouco, dormindo, para continuar amanhã, quando os acontecimentos talvez venham a ser diferentes. Mas que faço hoje, no entanto, está implícito no que fiz ontem. Meus pés não vão aonde querem mas seguem um caminho que vem de longe.

Entre as imagens incertas da insônia, reconheço este pátio empoeirado, a paineira talhada na base a canivete, os pórticos longos e escuros. Uma Nossa Senhora, azul, insulada em um monumento de pedra, domina o centro do pátio. Há um refeitório de mármore rosado, onde se servia comida ruim e abundante. Uma vez, em uma crise de ascese mais pecadora que virtuosa, passei mais de um mês a pão e água.

Adiante do refeitório, uma escada de madeira sobe à enfermaria, ao cheiro de doença limpa, aos cuidados de um farmacêutico de voz adocicada, sedativa. Depois a capela, os confessionários, de que eu costumava fazer longas e reprovadas abstinências.

As paredes eram brancas e irremediáveis. Guardo a tristeza desse branco de cal para sempre. Oh, os domingos nesse colégio triste, quando o branco dos muros era mais branco, mais inexorável! Alguns tinteiros que consegui esborrachar nas paredes não vingam, nem um pouco, o meu longo tédio impaciente.

Brancos eram também os dormitórios. Nas quatro paredes uma advertência presuntiva: “Deus te vê”. “À noite, além do lumezinho vermelho do oratório, eram mantidas acesas duas ou três lâmpadas foscas e vigilantes. Abusei muito de meus olhos lendo com essa iluminação escassa os romances de “visto” impossível.

O colégio ficava no alto, em meia esfera montanhosa, cercada de capoeiras e morros depenados. À certa distância, a cidade velha, as casas pobres de Cachoeira, a gente malnutrida e mal vivida, as moças de uma feiura sem remédio. De tempos em tempos, lá íamos chupar jabuticabas, que são as melhores do mundo. Havia lá uma praça onde Felipe dos Santos foi preso; e as igrejas barrocas! Cachoeira era uma lástima, mesmo para nós. Supor que muitas pessoas que eu via em Cachoeira, lá continuam, sem nunca ter saído, me dá uma vertigem sentimental.

No império, o colégio era quartel. O “quando aqui ressoavam as patas dos cavalos dos Dragões d’El Rei” era um efeito oratório que padre conselheiro não dispensava de seus discursos.

Do lado de fora, ficavam os eucaliptos, a brisa perfumada no outono, o caminho da estação ferroviária. Uma alameda de ameixeiras lá até os campos de futebol, de onde voltávamos suados, no crepúsculo, oprimidos de saudade de casa, a mais pura e intratável das saudades.

Era difícil vencer as duas horas de estudo que se seguiam. Era preciso enganá-las. Muitas vezes, fui expulso para fora do estudo, para ficar em uma coluna do pátio. Sozinho no pátio, o menino se transformava no aprendiz da noite, a noite com seu silêncio cheio de bichos, suas sombras desfiguradas. “Seu” Vicente, o irmão roupeiro, em um andar de seriema, costumava cruzar o pórtico, apertar minhas bochechas em uma solidariedade algo veemente e ir-se embora. Esse homem noturno manso nunca dizia nada, embora soubesse um desperdício de línguas. Tenho muita vontade de escrever, um dia, sobre o colégio...

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