Deixei a redação deste jornal às sete horas da noite. Sentia-me cansado e mais ou menos feliz, e pensei que seria bom remate para essa contradição tomar alguma coisa em um bar da rua São Bento. A essa sugestão de mim para mim mesmo, me lembrei que tinha o compromisso de ir a uma exposição de pintura na Cinelândia. Minhas pernas estacaram na esquina e se puseram a entabular com a minha consciência o eterno diálogo entre o dever e o bem-estar. As pernas queriam o bar, a consciência ameaçava levar-me à Cinelândia. Fiquei assistindo a essa conversa durante um minuto, que é meia eternidade para diálogo tão metafísico. E chegaram as duas, para meu espanto, a um resultado imprevisto: agora era a consciência, de súbito revoltada contra as obrigações cerimoniosas, que pleiteava o bar; as pernas, meras funcionárias dos meus deveres, humildemente queriam conduzir-me ao centro da cidade. E as vi, minhas fatigadas e medíocres pernas, atravessarem resolutas a avenida Rio Branco, sem ligar muito aos automóveis que poderiam destruir a consciência.
Marcharam até a praça Mauá e, para vexame de tudo que ainda existe de puro na consciência, firmaram-se na fila do circular. Como frágeis, mas obedientes colunas da ordem capitalista.
Na fila não havia muita gente. Reparei em duas moças, um estrangeiro com umas flores embrulhadas em papel azul, um casal gordo. E começamos o trabalho de esperar, que não é dos menos enjoados e degradantes.
Quinze minutos. Vinte minutos. O gordo observou à mulher que os motoristas deveriam estar jantando. Merecem, coitados ― disse ela ― mas e nós? Esse “masinós” ficou por ali como um palavrão.
As duas jovens enumeravam desventuras que a demora de transporte trazia às suas vidas. Um rapaz chamado Ernesto ia ficar fulo com o atraso daquela noite. O estrangeiro, que era alto e feio, metia os olhos na avenida como o náufrago da ilha deserta investiga os longes do mar.
Vinte e cinco minutos. Sem perder o lugar na fila, eu procurava lobrigar um táxi fortuito. Em vão. Todos os choferes do mundo estavam jantando.
Aos poucos íamos nos tornando ridículos de tanto esperar. Chegávamos a disfarçar a nossa ansiedade para disfarçar também a nossa tristeza. O casal gordo foi cavar um bonde para os lados da rua Acre. Do embrulho azul rolaram duas pétalas de uma rosa escarlate. O homem olhou as pétalas com angústia.
Sete e meia. A espaços, um lotação distante nos dava uma esperança, mas cortava a praça e seguia na direção dos armazéns do porto.
Poucos minutos antes das oito, dei comigo pensando no sr. Getúlio Vargas, que é um cavalheiro poderoso, eminente e rico. Nós não éramos nada, uma dúzia de sujeitos esperando um lotação na praça Mauá. O sr. Getúlio Vargas, se quisesse, poderia assinar um contrato para comprar navios. Nós não podíamos fazer nada, senão esperar. Ou desistir de esperar, inclusive que organizem esta cidade e este país.
Então, minhas pernas e minha consciência, de comum acordo, atravessaram a avenida de novo e entraram no bar. Havia um retrato do velho na parede. Lá fora começava a cair um chuvisco idiota.