Periódico
Diário Carioca
coluna: Primeiro Plano. Título atribuído por Paulo Mendes Campos à crônica identificada na base de dados da instituição como Nada há que mais amoleça...

Nada há que mais amoleça o coração do que os emperramentos do corpo. Com a mazela do chefe se rejubila o subordinado. A gripe do diretor o coloca em pé de igualdade com os seus funcionários, que se aproveitam disso para forçar-lhe a intimidade, esperançá-lo com receitas, embalá-lo com histórias de outras gripes. As mulheres, sobretudo, têm o dom fabuloso de sitiar um chefe, a quem sobreveio qualquer desventura orgânica. Deem-lhe uma dor de cabeça e constroem reino.

Nem sempre há interesse imediato, ou mesmo cálculo, quando o subordinado se apega à doença do chefe, a fim de, mais longa e amavelmente, conversar com ele. O que há, quase sempre, é mais simples e mais digno de meditação: o soldado raso sente refinado prazer quando o sargento lhe pede um cigarro; o auxiliar de escritório baba-se de contentamento quando o industrial lhe aperta a mão. Em uma palavra, o homem respeita vilmente, intimamente, as escalas hierárquicas.

O sr. Getúlio Vargas escorregou na cera do assoalho, levou uma queda e partiu o úmero. Fico pensando nas consequências humanas desse acidente. Fico pensando que a gente humilde, gente que jamais compartilhará da amizade de um contínuo do Catete, tirante um vago desafogo de verificar que o presidente da república também escorrega, há de condoer-se do infortúnio presidencial, “Coitado do Getúlio”! ― muitas mulheres pobres terão exclamado por este Brasil a fora. Tenho minhas dúvidas, no entanto, de afirmar que uma igual sinceridade na condolência haja trabalhado o ministro, o senador, o deputado, o general, o embaixador, o político petebista.... Dói-me desconfiar que a reação desses haja sido de satisfação e não de pesar.

De fato, enuncio por hipótese que a frequentação do palácio faz da bajulação a segunda natureza do áulico, e não há oportunidade mais generosa ao bajulador do que a pequena desgraça de um rei, de um ditador ou de um presidente da república.

O presidente quebrou o braço.... Os bons e obscuros republicanos hão de lamentar o fato ou, pelo menos, hão de sentir a indiferença, que é o ponto zero da solidariedade. Mas o homem importante, o homem que pode subir impunemente as escadas do Catete, há de pegar nesse braço com o regozijo de quem agarrou o balaústre do bonde que passava. O palácio será pequeno para tantas cartas, tantos telegramas, tantas caras contristadas. A mão esquerda do presidente será pouca para tantas outras mãos, trêmulas de simpatia. Seus ouvidos se aquecerão nas palavras de conforto, de dedicação pessoal e partidário. Haverá mil maneiras ardilosas de envolver o presidente, de contar-lhe casos parecidos, de aconselhá-lo, de estimulá-lo, de convencê-lo de que poderia ter sido pior, de mostrar-lhe carinho e afeição. Esse calor humano não gera a tristeza e sim o entusiasmo. Amor com amor se paga. Será com a exultação de quem fez um bom investimento que há de sair do Catete aquele que lá entrou com a fisionomia mortificada.

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