Éramos cinco: Tônia Carrero, Carlos Thiré, Rubem Braga, o dono do barco e eu. Havia também um cachorrinho? Não me lembro. Creio que havia apenas uma vaga vontade de que houvesse também um cachorrinho, aburguesando ainda mais docemente a manhã de domingo.
Fui apresentado ao dono do barco, quer dizer, eu lhe disse timidamente as palavras convencionais de muito prazer, enquanto ele resmungava dois ou três monossílabos incompreensíveis, sem sorrir nem nada, digo mesmo que com uma certa raiva. Claro que essa falta de cordialidade me deixou irritado e sem jeito, sentimento desagradável que foi melhorando quando percebi que os demais companheiros eram tratados com a igual rudeza, inclusive a linda e gentil atriz. Percebi mais, que fazia mesmo parte da diversão apreciar o mau humor do dono do barco, gozar as suas cóleras vulcânicas. O que era, sem dúvida nenhuma, viver perigosamente, porque se tratava do homem mais estupidamente forte que pisou a terra de Santa Cruz, Joe Louis inclusive. Era uma fera, um monstro, um cataclismo humano, uma tempestade iminente, um vendaval de ódio, um furacão indomável, um terremoto ambulante, um tigre sanguinário, um elefante possesso...
Se lhe perguntavam alguma coisa, as veias de sua testa ficavam entumescidas como bifes sangrentos, latejantes no esforço sobre-humano de pensar. Em vão, em geral. O mais das vezes as veias se apagavam sem que o cérebro compensasse o trabalho mental de formular um pensamento, um pedaço de pensamento. Então, ele resmungava entre cordato e feroz, como os leões do circo resmungam aos domadores.
Aí pela altura do forte São João, quando o motor do barco engasgou pela primeira vez, fui compreendendo melhor a natureza do homem. Ele tinha conosco uma relação de forma, cabeça, troncos, membros.... Por dentro, seu parentesco mais íntimo era com as coisas: o mar, a madeira do barco, o motor, os ventos.... Com esses ele falava continuamente, melhor, com esses ele discutia violentamente, xingando o mar, chutando o barco, interpelando veementemente o motor sobre suas safadezas, berrando aos ventos que mudassem de direção...
Era uma cena dantesca o tombadilho. O próprio Netuno, se por um momento houvesse chegado à tona de seus mares, teria retornado às pressas à profundeza, arrepiado de medo de vê-lo esmurrar o motor, levantar os braços, apostrofando os elementos, pedindo aos céus um bofetão que o matasse ali naquele instante, arrependendo-se em altos brados de ter nascido.
Na altura do Posto 4, quando o barco enguiçou pela segunda vez, sua raiva era tanta que ele não disse nada: precipitou-se sobre o motor e começou a comê-lo. E as demais testemunhas estão supracitadas para dizer que não minto.