O fato que aqui relatamos só causará incredulidade aos ignorantes. Se Edgar Poe conseguiu conversar com um corvo, em inglês, por que não conseguiríamos nós entabular conversa com um mero gavião, em mero português? Meninos, eu vi e ouvi o gavião, sobre o qual este jornal tem dado amplo noticiário, o gavião que frequenta as torres da Candelária, não com intenções piedosas, mas como o frio propósito de almoçar os pombos mansos que por ali esvoaçam e emprestam à tarde urbana um pouco de doçura. Foi à tarde de sábado que subimos a encaracolada escada que leva aos altos da Candelária. Chovia.

Depois de uma breve busca, em um dos vãos da torre, deparei com o gavião. Primeiramente, contemplei-o à distância, sem que ele desse pela presença de um jornalista, a fim de surpreendê-lo em naturalidade. Pareceu-me um gavião da classe média. No jeito com que olhava a avenida Presidente “Vargas” havia mais tédio do que ferocidade. O pescoço, curvo, denotava cansaço, o bico, esse era um bico triste e ridículo de papagaio; as penas da asa arrepiadas pela chuva davam-lhe ainda mais uma impressão de desconforto e aporrinhação.

Cheguei-me. Olhou-me de lado, com desprezo, procurando sobretudo verificar se eu trazia comigo uma câmera fotográfica.

— Nada de fotografias, falou-me com uma pobre voz de ventríloquo.

Não me espantei com essa cautela. Com uma ênfase de que não se envergonharia Victor Hugo, realizei logo que também aos animais assassinos sobra um pouco de amor-próprio. De certo, ele não queria ser apontado ao escárnio público.

Em seguida, achei que o melhor meio de entrar logo em matéria jornalística, seria fazer uma pergunta ousada, que ferisse os brios do entrevistado e o pusesse a falar. Perguntei-lhe, não sem um sorriso de malícia:

— Esperando o jantar?

Fitei-lhe os olhos para não perder nenhum pormenor psicológico das reações conscientes e inconscientes que lhe podia ter provocado a minha questão. Ele, entretanto, disse apenas:

—  Não, já jantei.

Cuspiu e acrescentou:

— Costumo jantar cedo. 

Não deixei que fugisse à questão implacável:

— Pombos, certamente?

— Sim, uma pomba branca. 

A maneira com que falou “uma pomba branca” era mais lírica do que perversa. São belas e anunciam a paz as pombas brancas que voam contra o céu azul. Já li um soneto sobre isso. E me lembrei também que, uma vez, a conselho de Mário Cabral, comi em um restaurante da cidade uma pomba deliciosa que talvez houvesse tido penas brancas. Meio perturbado com essas lembranças e com a calma do gavião, tomei um tom professoral:

— Gavião, és malvado? 

Sorriu com indulgência.

— Eu?! Sou um pobre gavião. Triste.

Não posso ouvir ninguém confessar-se triste que me comovo. Mas, procurando disfarçar-me, interessei-me.

— E, tens motivo de ser triste? A resposta foi lacônica e rouquenha:

— Não gosto daqui.

— E por que não vais embora?

— Pra onde? Um gavião come as suas pombas onde as encontra. Além do mais, meu caro repórter, a vida de um gavião é curta demais para esperanças grandes. O espaço e o tempo são ilusões. Aqui, pelo menos, não me falta o que comer, e posso me abrigar contra a chuva. Tenho um certo medo de ir embora.

— Mais vale um pássaro na mão do que dois voando, não é?

Meu provérbio desgostou-lhe. Encorujou-se mais e enfiou os olhos no asfalto molhado lá de baixo. Sua postura melancólica me fazia lembrar a cegonha de Aníbal Teófilo, “debruçada sobre a angústia humana de si mesma”. E não disse mais nada e nada mais lhe foi perguntado.

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