O autor desta seção se recusa no dia de hoje a enramar seus contumazes casos pitorescos. Sou um homem de alguma boa fé e de bastante bom humor mas a graça de meu dia se estraga quando chega até mim a notícia de que a polícia espancou alguém. Não conheço o sr. Nestor Moreira e nem sei de amigo meu que o tenha por amigo. E não é apenas uma exaltação de solidariedade profissional que me leva a fugir da natureza desta coluna. É uma indignação velha, sofrida e cansada.

O respeito à personalidade humana é a própria história da civilização. Para conquistar-se esse respeito à personalidade humana houve guerras, morticínios, e houve também o magnífico esforço intelectual do homem, ofendido e recomeçado em cada geração, vilipendiado e defendido. A sociedade não tem outra missão do que a de proteger e exaltar a personalidade de cada um dos seres humanos que a compõem. A polícia não sevicia apenas um homem, é o ser humano que é ultrajado todas as vezes que se repetem essas absurdas e intoleráveis brutalidades. A polícia, que deve defender a integridade humana, é justamente o instrumento que retalha o mais antigo e duro trabalho da humanidade: o de proteger o homem contra o homem. A humanidade nega o seu próprio destino quando se silencia diante da violência. Uma nação se avacalha quando começam a repetir-se impunemente nas delegacias e nas prisões esses atos selvagens.

O corpo humano é de uma gravidade indizível. Brutalizá-lo é enxovalhar o próprio mistério da vida. Sempre busquei nos olhos dos adultos espancados uma terrível expressão infantil de pânico, de humilhação e desamparo. Os olhos dos homens batidos protestam com o olhar da própria infância. É uma expressão horrível essa dos homens seviciados, e não posso surpreendê-la sem o arrepio da revolta e da miséria moral. Não se bate covardemente em uma criatura humana — é o mínimo que se exige de uma outra criatura humana.

Jean Genet, um criminoso de gênio, diz que não há diferença entre a natureza do policial e a do criminoso. Parece que o escritor francês tem razão em grande parte. E isso nos serve, a todos os homens de boa vontade, de advertência: para que a humanidade se liberte das suas nódoas de primitivismo, tem que sustentar uma lata contra os criminosos e contra a polícia. Idealizemos uma polícia de homens humanos e lutemos por ela.

Eu e o leitor não precisamos para a defesa de nossos direitos que a polícia brasileira seja violenta. Entretanto, infelizmente, essa não é a regra geral. A polícia de um Estado é feita à imagem dos homens que o governam e o possuem. E se a nossa polícia é violenta é porque ainda os “donos do Brasil” têm motivos para acreditar que os seus interesses só podem ser defendidos pela força e pelo terror.

P. S. — Crônica escrita antes do agravamento fatal do estado da vítima.

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