Desde que aqui no Brasil abandonamos a improvisação, com que jogávamos futebol, em nome de sistemas táticos, criou-se aos poucos, entre nós, uma elite dos que avocaram a si mesmos um perfeito entendimento dos segredos deste esporte, em detrimento de toda a grande massa que comparece aos estádios, paga a entrada, assiste aos jogos, torce, aplaude, comenta, mas que nada entenderia. Entendiam: os técnicos, os cronistas esportivos, os dirigentes, alguns veteranos. O público não entendia nada. Mesmo entre aquela elite dos entendidos começaram a ser feitas distinções as mais severas: “O único sujeito que entende futebol no Brasil é o técnico fulano”, “cronista é sicrano, os outros são uns bobocas”.

Era o que a gente ouvia nos bate-papos de café.

Ora, acredito eu que seja exatamente o contrário: quem entende de futebol é exatamente o público. Aos técnicos e dirigentes compete exclusivamente proporcionar ao público um futebol da maneira que ele o entende, da maneira que ele gosta.

Um indivíduo, porque escreve peças de teatro, não entende de teatro obrigatoriamente. Pelo menos, essa é a hipótese que não se admite no momento em que o autor apresenta a sua peça à audiência, momento em que cabe ao público entender de teatro, para gostar ou não gostar.

Há neste Rio de Janeiro muitos indivíduos que sabem fazer jornal. Mas não são eles que decidem se um jornal está bom ou ruim. É o público. Eles apenas demonstrarão que sabem realmente fazer jornal quando apresentarem aos leitores um jornal que esses leitores entendam como bom.

Em outras palavras, em todas as atividades feitas para grandes públicos há dois fatores: a maioria que entende e a minoria dos que fazem. Um técnico de futebol entende de futebol porque ele também é público de futebol. Antes de ser técnico, ele estava nas arquibancadas. Por concordar em linhas gerais com a opinião dessas arquibancadas é que foi chamado para ser técnico de futebol.

Esse técnico é apenas um espectador que, dotado de algumas qualidades não exigidas de quem apenas quer assistir ao futebol (energia, amor ao trabalho, etc.), poderá oferecer ao público o bom futebol que esse público entendido está a pedir. É claro que, uma vez de dentro do seu novo emprego, ele saberá muitas coisas que o público ignora: que o jogador Zequinha está adoentado, que o jogador Pé de Anjo está de pirraça, etc. São as únicas coisas que ele sabe mais do que nós. Quanto ao mais, é de seu dever e de seu próprio benefício agir de acordo conosco, pesar as nossas opiniões, escutá-las, atendê-las.

O erro de Zezé Moreira foi o de ter se colocado contra o público. Revelou-se ele de um individualismo jamais visto em futebol. Abstrato e hermético, o nosso técnico nunca teve a comiseração de explicar-nos por que motivo botou esse ou não aquele jogador, adotou esse ou aquele sistema.

Ganhamos os jogos eliminatórios debaixo do mal-estar de uma torcida que tão facilmente se entusiasma. O público se descontentava com essas partidas, mas Zezé Moreira, misterioso e sábio, confessava-se plenamente satisfeito.

Não houve uma única pessoa no Brasil com a coragem de dizer em voz alta que Rodrigues estava jogando bem. Zezé Moreira, misterioso e sábio, conservou Rodrigues.

Com todos os seus gols Baltazar não conseguiu comover a assistência, que o considerava atabalhoado e sem domínio de bola. Zezé Moreira, misterioso e sábio, conservou Baltazar até a penúltima partida, quando, de repente, ocorreu-lhe que índio talvez desse melhor rendimento.

O robusto Humberto não disse a que foi convocado para atuar na posição de Jair. Zezé Moreira, misterioso e sábio, insistiu em conservar Humberto.

O público só faltou pedir pelo amor de Deus para que Zezé Moreira experimentasse, pelo menos, Zizinho e Ademir. Zezé Moreira, misterioso e sábio, fez ouvidos de mercador.

Didi atuava ora bem, ora mal, e o público gostaria de dar uma chance a Rubens. Zezé Moreira, misterioso e sábio, misterioso e sábio, misterioso e sábio...

Acredito sinceramente que Zezé Moreira seja um profissional competente e capaz. O que lhe faltou foi humildade e senso comum.

Pessoalmente, desconfio muito de minhas próprias conclusões a respeito de futebol. Entretanto, quando uma dessas conclusões coincide com o julgamento da maioria tenho vários motivos para julgá-la acertada. Se, por exemplo, me entusiasmo com o jogo de Castilho, Pinheiro, Santos, Djalma Santos, Julinho, Zizinho, Ademir, Jair, Telê, Garrincha, Alvinho, Escurinho, e se a opinião geral é de que são estes, de fato, excelentes profissionais de futebol, vem-me a agradável impressão de que estou certo. Se por um motivo qualquer, pelo contrário, der me na cabeça que Humberto é o melhor meia-esquerda do Brasil, e se essa não for uma impressão generalizada, começo a desconfiar que estou errado.

Isso porque estou absolutamente convencido de que um esporte só pode ser popular em um determinado país quando o público que o prestigia entende satisfatoriamente dele. De maneira nenhuma posso deixar de crer que o povo americano entende de baseball. Ou que o povo espanhol entende de touradas. Também não posso crer que as dezenas de milhares de pessoas que acompanham exaltadamente as partidas de futebol no Brasil sejam todas basbaques, que nada entendem do que veem.

paulo-mendes-campos
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