Procurando manter-se imparcial, contarei a história de Atenas e Esparta. Os acontecimentos me tocam fundo e diretamente, mas quero conservar a ombridade de não deturpar os fatos ou de desvirtuar suas lições.
Foi exatamente há vinte anos. A ideia partiu dos padres salesianos, nossos mestres. Do clérigo Francisco. Não consigo lembrar-me precisamente do critério adotado por “seu” Francisco, quando repartiu a Divisão dos Menores do Colégio Dom Bosco (os “crilas” como éramos chamados por Médios e Maiores) em duas categorias: de um lado, Atenas; do outro, Esparta. Não me recordo se o ato do nosso assistente se vinculou às notas obtidas pelos alunos ou, se um dia, usando apenas do critério pessoal, reuniu-nos a um canto e anunciou que iria separar o joio (Esparta) do trigo (Atenas).
Sei que nos vimos classificados em dois grupos: Atenas, pátria das virtudes; e Esparta, onde começava a ignorância.
Qualquer que tenha sido o critério, no entanto, sua procedência era tão evidente que, pela primeira vez, pudemos contemplar com espanto as qualidades morais e materiais, que nos associavam, em dois bandos distintos. Até então, essa ideia não nos ocorrera. “Seu” Francisco apenas revelou para nós uma desigualdade que não conhecíamos. Vimos que todos os atenienses tinham espantosas qualidades comuns, e que todos os espartanos tinham defeitos em comum.
Eu era um cidadão de Esparta.
Tenho minhas dúvidas sobre a validade pedagógica desse procedimento que veio dividir a nossa Hélade primitiva, a banhar-se ainda no orvalho dos mitos infantis, em duas cidades opostas, em duas classes que se contrastavam. Como expediente para dissimular o tédio, para dar vazão à força de melancolia que se acumulava em nossas almas, apartadas dos carinhos familiares, a fundação de Esparta e Atenas foi politicamente perfeita. Os “crilas” se animaram. Caímos todos na História da civilização de Jonathas Serrano e nos fizemos, aos dez anos de idade, helenistas conscientes. Buscávamos na antiguidade grega argumentos e exemplos dialéticos que dignificassem as nossas condições de atenienses ou de espartanos, e que orientassem os nossos atos.
“Seu” Francisco visava a emulação das virtudes. Intentava, com a exaltação dos atenienses, pôr em brios a meninada espartana. Confesso que entre nós houve espartanos débeis que se sentiram humilhados em sua cidade e que, pelo estudo e pelo bom comportamento, se esforçaram para obter uma transferência a Atenas. Muito poucos, no entanto.
A princípio, todos os espartanos sofreram o choque da desigualdade, mas foi um sentimento ligeiro, que não nos abateu, que procurou em si mesmo força para reagir. Esparta, pouco a pouco, se convenceu não só de sua inelutável fatalidade histórica e social, como aprendeu a orgulhar-se de seus defeitos. Este será o capítulo que narraremos amanhã.
Nota: Título atribuído por Humberto Werneck à crônica identificada na base de dados da instituição como “Procurando manter-se imparcial...".