Mario de Andrade era uma das criaturas de quem eu gostava. Meio descômodo e até antipático fui sempre de uma incrível má vontade para com o próximo, sobretudo, quando esse próximo é um literato de fama que, tendo vivido quarenta ou mais janeiros, passa a fabricar uma pose para as gerações mais moças. E sempre desconfiava das amizades de intelectuais maduros com intelectuais incipientes. Via nelas não o exercício de uma afabilidade desinteressada, mas um imperativo de quem precisa de apoio e de simpatia jovem.

Mario de Andrade, entretanto, resistiu ao meu envinagramento, à minha agressividade, à essa feição antipática do meu temperamento. E aconteceu assim: quando ele esteve cá entre nós, em setembro do ano passado, convenceram-me de ir recebê-lo na estação.

Era um tímido escondido na serenidade que os anos trazem. Era enorme. Era muito polido. Tinha um riso bom e compreensivo que me envergonhava, mas que ia, pouco a pouco, permitindo a gente de caminhar na intimidade que o pudor lhe impedia de franquiar de vez com um “pode entrar, você não precisa pedir licença”. Era vago e distraído por educação: nada fazia suspeitar nele a agilidade mental fabulosa e a agudeza que iriam aparecer mais tarde, nas cartas. Talvez, a minha inépcia psicológica erra de novo, mas eu ia descobrindo também nele um certo jeito humilhado, um ar de quem pede desculpas, um cansaço oculto em delicadeza e vontade de ajudar. Sentia-se mal na sua glória. Esforçava-se para recuperar a intimidade que as cartas autorizavam e que a presença súbita viera tornar difícil.

Ao fim de uns três dias, éramos amigos. Aparentemente nada acontecera. Nada realmente, que lembrasse de leve um contrato. Éramos amigos. Mais nada. Entregara-me à sua humanidade vasta, lírica e quase... maternal. Já não permitia em mim o esporte mau de ir buscar-lhe as fraquezas ou os defeitos para adicioná-los aos prejuízos contra, que me salvassem de me ligar a mais alguém. Quando a amizade denuncia defeitos é para amá-los, ainda que os combata. E nisso Mario de Andrade dava o exemplo. Não fazia vista larga com os amigos. Brigava, condenava, discutia, acusava. Muitas vezes, voltava atrás, dava-nos razão, ia contra si mesmo. Isso era bonito. E era dignificante. Me consolava da humanidade.

Mario foi um mestre da amizade. Possuiu um senso agudíssimo do próximo. Não necessitou de um sistema teológico para descobrir o outro. 

Coisa contraditória, apaixonado e de convicções irredutíveis, respeitava ao extremo a liberdade alheia. Admitia (e isso nele me comove) que às vezes a vida e as almas dos homens são mais fortes que eu. Podia ser amigo de todos. Nunca por gratuidade ou por ceticismo. Pelo contrário, foi ele, antes de tudo, uma atitude moral e normalizadora diante da vida e das criaturas. Não se permitiu ao luxo de gozar o lastro amoralista que há nos homens. Era a sua grandeza de alma, a sua humildade sofredora de quem busca a estrela da manhã, a sua vocação humana, a sua camaradagem terna com todos os habitantes desse mundo, que lhe permitiam ser amigo de todos, mesmo de uns errados feito eu. “Gosto de você com raiva” ― dizia-me ele numa carta. Suas convicções não anulavam seu sentimento do universo: queria melhorar e para isso era preciso combater, mas reconhecia comovido em qualquer rosto humano o ser desabrigado precisando do amor e da simpatia que atenuam a insolvência universal. E eu passei a amar nele o que me faltava: a capacidade de ser justo dentro das paixões como das ideias.

Fiquei lhe devendo uma carta. Responder, já respondera. Mas minha economia esquecera essa carta no fundo da gaveta a ver se resistia ao tempo. Isso que eu lhe dizia tornou-se inútil. Você já não pode, Mario, me ajudar de repente quando eu precisar. Você era como eu mesmo, que tivesse amadurecido e pensasse melhor, sem a superioridade ou mesmo a imparcialidade detestável das opiniões alheias sobre a gente. Você pensava dentro de mim, discutia como se fosse a facção contra que existe dentro de nós nos indicando o caminho decente, torcia comigo, vaiava comigo, tinha a coragem, às vezes, de dizer: “Que farás”? Não doutrinava, não aconselhava, não permanecia de fora; comungava com os nossos desencantos, nossas angústias, nossas confusões. “Se você quiser (precisar) fazer uma besteira, faça”. ― Era nesse clima nada catedrático, mas comovente, que você era amigo dos moços.

Perto de você, eu me sentia mais seguro, mais tranquilizado, mais corajoso. Falei que você era quase maternal: é que a sua presença (ou pessoal, ou nas cartas, ou nos livros) nos ligava à terra. Você é uma ponte capaz de me reconduzir de mim mesmo para o mundo, do sofrimento ou de alegria na solidão, para o sofrimento ou para alegria lá de fora.

Já não tenho a quem escrever cartas. Mas você irá me ajudando lentamente.

paulo-mendes-campos
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