Conheço um engenheiro. Não é como todos os engenheiros. Melhor, é um engenheiro um pouco mais complicado.

Jamais o ouvi conversando sobre cálculos de concreto ou sobre quaisquer coisas que a vã filosofia dos literatos não compreende. Este engenheiro é um leitor. Um leitor de literatura. Compra livros, lê, comenta, conserva livros, pondo nisto tudo um carinho e uma severidade, digamos, maternal. Não há nome nas letras nacionais que ele não conheça. Sobretudo, conhece a vida de todos, interessa-se ao extremo pela vida de todas as pessoas que usam judiciosamente uma pena na mão. É um engenheiro esquisito. Não há conferência literária que a ele não vá. Não há notícia literária que ele não informe. Lê com um método escrupuloso e apenas nisto se denuncia sua vocação para as ciências positivas. Se há alguma coisa na literatura que ele não compreenda bem, estaca: não vai para a frente enquanto não se esclarece a dificuldade. Neste imenso Brasil, onde as leituras nossas são feitas ao azar, ele procede de modo mais inteligente: conquista a literatura como um cabo de guerra conquista o território inimigo. Traçou planos. Calculou quantos anos deve viver e quantos livros poderá ler durante este tempo todo. Não faz farra, porque isto diminuiria a sua vida, quer dizer diminuiria o número de livros que ele poderia ler. Naturalmente, se evitou o matrimônio é porque isto viria roubar-lhe o conhecimento de alguns livros essenciais. Também não quis ficar rico: sendo um técnico muito competente, obstina-se em conservar um lugar modesto do engenheiro do estado, conhecedor que é das injunções que o dinheiro traz. O mundo para Silvio Felício dos Santos reduz-se a termos de leitura de conhecimento, de aprendizagem da alma humana. Porque este engenheiro não procura na literatura a mecânica das palavras, procura a alma dos homens, a vida dos homens, os dramas e as complexas alegrias dos homens. Tudo isto de um jeito discreto e simpático. Quando está numa roda de literatos, suas opiniões vêm ungidas de um certo pudor, como se pedisse desculpas por se interessar tanto, sendo um engenheiro, ela vida das ideias. Ficamos todos sabendo que livro ele está lendo. Porque ele o comenta com cada um, quer saber as diversas opiniões, pesá-las. Não tem pressa. Não se impressiona com grandes sucessos do momento, está lendo A tempestade, porque chegou a vez de ler Shakespeare. Namora algumas escolas ou tendências como a surrealista, mas não se torna discricionário nos seus julgamentos. Sobretudo, não foi assaltado pelo desejo de ser também um autor. Ele é o leitor, inteligente, cuidadoso, de bom gosto, encontra-se, possivelmente, entre os dez dos leitores que Machado de Assis pedia. E dá aos cientistas de nossa época uma lição de fidelidade à vida, de sabedoria humana: procura a literatura, como quem só bebe água nas fontes.

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