Quando mudei para lá era uma rua empoeirada, um pó quase escarlate que aderia às minhas mãos e a meu rosto de oito anos. Eu tinha oito anos quando fui morar numa casa da avenida Paraúna. Naquele tempo, ainda havia lá muitos lotes e as casas espaçadas davam a impressão de uma criança com os dentes adultos a nascer. A Prefeitura Municipal então tentava fazer vingar as árvores que hoje fazem a emoção dessa avenida quando o vento doido de Belo Horizonte esparrama as florezinhas sobre o asfalto onde se forma um tapete amarelo e inquieto. Tempo e dinheiro custou a arborização da avenida Paraúna. Nós, porque eu também andava à malta, arrancávamos implacavelmente as árvores, verdadeiros Átilas de cara suja. Foi preciso que crescêssemos para que elas também crescessem. Era terrível e sem compaixão o nosso bando. Georges, Zeca, Chico, Rubens Carlos, Roberto, Fernando Homão, pequenos demônios que vão exercendo hoje as pacíficas profissões liberais. Éramos a quadrilha da Paraúna e, modéstia à parte, não tínhamos rivais: nem mesmo o pessoal da Barroca nem os afamados bandoleiros de Santa Efigênia podiam conosco. Não imperávamos apenas em nosso “distrito”, como também íamos provocar o inimigo em seu próprio território, armados de pedras e porretes e sobretudo de uma enorme vontade de brigar. Se a Paraúna apanhava na quinta o que aconteceu poucas vezes, voltava novamente na sexta para descontar.

O tempo encheu de casas a avenida Paraúna o asfalto civilizou-a, o footing namorisqueiro das quintas e domingos a tornou romântica. Hoje trata-se de uma séria e uma das mais bonitas da capital mineira. A vadiagem nas novas gerações é bem mais calma. Não brigam tanto quanto nós brigamos, não roubam tanta fruta quanto nós roubamos, não quebram tanta vidraça quanto nós quebramos, não infernizam tanto as meninas de colégio como nós infernizamos.

Paraúna significa rio preto. É um nome sóbrio e decente. Não me lembro bem do ano em que lhe trocaram o nome de batismo para Getúlio Vargas. De todas as ruas de Belo Horizonte, foi a minha avenida condenada a homenagear o ex-ditador a contragosto como tantas homenagens efetuadas durante o Estado Novo. Sinto que a minha rua gostava de chamar-se Paraúna. Se isto for exagero, nós os seus moradores gostávamos que ela se chamasse Paraúna. Substituíram-se as placas das esquinas ficou, entretanto, o espírito da rua, espírito de Paraúna.

Getúlio Vargas, antes de tudo, é nome de gente. Digo antes de tudo, porque em primeiro lugar acho que não se devia dar às ruas e às cidades os nomes dos seres humanos. Uma rua é uma coisa, uma cidade é uma coisa e as coisas possuem uma dignidade e uma pureza que não se dão bem com nomes de pessoas. Seria absurdo se algum fazendeiro paulista batizasse o seu pau d’alho de Ademar de Barros. Pau d’alho é pau d’alho. Rua é rua, embora seja preciso dar-lhe um nome. Nome de gente não, nome de coisas como as ruas da meninice do poeta: rua da Aurora, rua do Sol ou qualquer outro que possa crescer junto com a rua incorporar-se à sua história penetrar-se da vida e do sentido especial que tem cada rua. 

Outro dia fui ao Senado. Falava o senador Getúlio Vargas. Das minhas cogitações naquele momento nasceu esta crônica. Por que Getúlio Vargas? Por que a minha Paraúna haveria de ter o nome daquele homem que estava ali a justificar os injustificáveis quinze anos de seu governo? Olhei para o nariz do sr. Getúlio Vargas, olhei a sua boca dissimulada, olhei a testa e os cabelos.... Porque motivo avenida Getúlio Vargas? Se eu esperasse na saída e o interrogasse, aposto que ele também não saberia responder-me. Diante disso, por que motivo avenida Getuzão que justifique a infeliz troca que fizeram com o nome de minha rua, havendo inúmeras razões para que lhe retribuam o antigo, faço um apelo ao prefeito de Belo Horizonte em nome dos moradores da avenida Paraúna no sentido da expressão latina; cuique suum. O sr. Getúlio Vargas com o seu nome, que aliás lhe fica bem, e a minha avenida com o seu.

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