Sr. Dean Acheson 

Secretário de Estado

U. S. A.

 

Devo pedir-lhe desculpas por não ter ido ao encontro que o senhor teve, na A.B.I., com os jornalistas brasileiros; tanto mais que o nosso comum amigo Herbert Moses descreveu o seu tipo com estas palavras encantadoras: “majestoso, porém não ridículo”.

Se faltei ao encontro, a verdade é que acompanhei, pelos jornais, sua visita ao Brasil; admirei sua estampa, especialmente seus bigodes, formosos e grandes, com duas pontas espetadas, uma para bombordo, outra para boreste; são bigodes imperiais, que lhe ficam muito bem; e conforme as guias desse bigode se voltam para um lado ou outro, o certo é que muda muito a direção dos negócios do mundo.

Mas de tudo o que senhor disse no Brasil, senhor Acheson, o que mais me impressionou foi o que disse na Câmara. Deixando de lado o discurso formal, que trazia no bolso, abriu o senhor o coração, e disse coisas raras. Das quais uma especialmente me despertou a atenção, que foi dizer o senhor que se sentia em casa.

Não esconderei que sua frase me deixou uma ponta de inveja. É que nem sempre, senhor Acheson, eu me animarei a dizer a mesma coisa. Sim, nem sempre me sinto em casa, neste país: às vezes tenho a impressão estranha e penosa de que sou um estrangeiro aqui, ou de que isso aqui é do estrangeiro. E, na verdade, o Brasil, um país estranho; não é, portanto, de admirar que a gente mesma o estranhe de vez em quando. O senhor é um homem feliz, que não estranha nada, e se sente em casa aonde quer que movimente os seus imperiais bigodes.

Na mesma ocasião o senhor falou muito em democracia e liberdade. Desde criança ouço falar destas coisas; e sempre me disseram que seu país é um grande modelo do que elas são, e valem. Foi certamente por isso que resolvi um dia ir visitá-lo: era um velho sonho que ia realizar e meu coração estava alegre. Pois essa alegria não durou muito: entre a minha humilde pessoa e a sua pátria da democracia postou-se um magro e implacável cônsul de costume riscadinho que me fez saber, com um sorriso maléfico e um “I’m sorry” não convincente, que o Governo dos Estados Unidos da América do Norte não tinha o menor prazer em receber a minha visita — e me negava, para encurtar conversa, o visto.

Fiquei chocado com esse contra, senhor; mas isso não tem importância porque tenho levado outros contras e choques na vida: e confessarei mesmo que essa recusa me entristeceu menos do que outras; no fundo a recusa de uma dama fere mais um homem como eu que a recusa de uma nação — pois assim é feita, de frivolidade e incoerência, esta pobre alma, latina e semicolonial. Mas esse “contra” teve consequências tristes; a pior delas é que, sem poder visitar a sua pátria, senhor Acheson, eu não pude beber as lições de democracia e respirar o clima de liberdade; passei mesmo a desconfiar de que essas coisas não são nem muito boas nem muito limpas, visto que se escondem da vista de um homem honrado e de boa fé, como costumam ser os Braga de Cachoeiro.

Eis porque fiquei assustado pelo fato de o senhor dizer que aqui estava em sua casa; essa declaração me deu um certo sentimento melancólico de mim mesmo, e fiquei a me perguntar se, estando aqui o senhor em casa, não estarei, por acaso, sobrando eu. Ontem entrou pela redação o Dantinhas, que é inspetor da imigração e bom amigo. Pois senti um vago susto quando ele veio me falar; não era nada; tinha acabado de ler o seu discurso na Câmara, senhor Acheson, e tive receio de que meu prazo de permanência no Brasil houvesse findado, e o senhor se negasse a me conceder outro visto.

O susto passou; mas não vale a pena esconder que continuo meio desconfiado; ainda estou com essa sensação desconfortável de estar morando de favor numa casa alheia, de onde a qualquer momento podem me mandar embora.

Do admirador e inquilino.

rubem-braga
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