Ora, que me acusem de municipal, por me demorar sobre coisas de Cachoeiro. Pois eu sou municipal; e municipais são 50 por cento dos brasileiros: ou outros 50 por cento não chegam a sê-lo, porque são apenas distritais. Sendo municipal deste município, cuido estar escrevendo sobre alegrias e males gerais do Brasil — que, no fim de contas, não é outra coisa que uma vasta montoeira de municípios. Haverá pessoas federais, como o poeta falado por Drummond, que tira ouro do nariz; mas serão poucas. Vou contar uma história por onde se vê o quanto pode ser maligno o homem de um município quando se lhe mete na cabeça tornar-se algo federal — deputado, por exemplo. É uma história de Cachoeiro; mas talvez sirva para outros itapemirins. Vamos ver.

Em primeiro lugar façamos nosso homem prefeito, o que para ele não é difícil. É moço e, mais do que isso, bom moço; e, para que não pensem que tenho qualquer má vontade contra ele, vamos pôr que é também simpático e inteligente. Médico e muito trabalhador, soube fazer uma grande clientela: depois soube fazer dessa clientela um eleitorado, o que não é mágica muito difícil, pois cada homem cuida que o doutor que lhe cura a dor de lado que nega daqui e responde acolá é capaz de curar outros, talvez todos, os males deste mundo, que, é sabido, anda cheio deles. Afinal pouca gente vota com a cabeça, muitas votam com o bolso ou a barriga: nosso homem foi eleito por fígados, estômagos, intestinos e outros órgãos, uns mais baixos, outros mais altos. O fato é que manobrando com todas essas vísceras e miúdos, conquistou o coração do povo — e, muito honradamente, foi ser prefeito.

Daria, com certeza, um bom prefeito, se não pensasse em ser outra coisa. Mas assim como um prefeito de Iconha espera ser deputado estadual, um prefeito de Cachoeiro está engrenado para deputado federal: o município é grande e feraz. Então acontece isto: que o prefeito é tudo, menos prefeito. É médico, pois não pode abandonar seus doentes eleitores; e é candidato a deputado. Com a mesma pena com que escreve as receitas ele despacha os requerimentos. O Joca tem um terreninho na estrada do Amarelo, que mal dá para fazer uma casa. Se no lugar de fazer a casa no alinhamento da rua ele pudesse avançar uns metros, isso lá atrás daria para fazer uma horta bem jeitosa. O Joca é um bom sujeito, e tem cinco a seis votos, talvez oito. De voto em voto a galinha enche o papo, e o municipal se faz federal. O Raimundo tem um terreno para lotear, perto do Aquidaban ou da Basiléa. Não custa dispensar certas exigências, aliás, formalidades. Assim, no lugar de fazer, por exemplo, 450 contos, o Raimundo pode fazer 550; e o Raimundo é um bom cabo eleitoral e também, naturalmente, um bom sujeito. Sim, porque em Cachoeiro todos somos bons sujeitos — a começar pelo prefeito. Na Câmara Municipal há uns espíritos de porco, que às vezes incomodam. O melhor é não ligar para eles: o destino natural das rendas municipais é o de serem empregadas em coisas que mostrem positivamente que o prefeito é um bom sujeito — e o elejam deputado. Não importa que o serviço de águas que custou tão caro, fique abandonado: afinal de contas se houver mais doentes o prefeito é médico e os cuidará — aos pobres, de graça. O serviço de águas e outras coisas assim não interessam: são assuntos gerais; e generalidades não elegem ninguém. Não importa que a cidade, em pleno crescimento, se estrangule. Amanhã que venha outro prefeito e gaste o que quiser para desapropriar e derrubar aquela casa construída na cabeça da ponte, que precisa ser alargada. Se o outro prefeito for bom sujeito ele fará daquele proprietário um amigo e eleitor, com uma boa indenização. No momento o que há a fazer é dar a licença. Ele dá licença para tudo, se lhe dão licença para ser deputado federal.

Em resumo: foi para o Palácio Tiradentes um novo deputado. Cachoeiro de Itapemirim ficou aqui mesmo, com suas ruas dando voltas de um lado e outro atrás do rio maluco, espremida entre morros. Uma cidade maltratada, estrangulada que, na sua força de crescimento, vai multiplicando os próprios problemas, como se o progresso fosse uma doença de glândulas. E é possível que o deputado federal venha a ser um bom deputado (do ponto de vista municipal) pois ele, diante de um problema nacional, só verá, só entenderá o que lhe poderá garantir votos aqui. De qualquer modo, continuará a ser um bom moço e, quem sabe, daqui a cinco anos, senador. Talvez seja esta, aliás, a sua ideia: a única, de resto. Pois as outras só servem para atrapalhar a carreira de um bom moço.

rubem-braga
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