Zico

Só outro dia me deram seu endereço, em Bruxelas. Fiquei contente, tomei nota e, naturalmente, perdi. Podia arranjar outra vez – mas você sabe o quanto me custa escrever cartas. É, talvez, por viver eu dessa coisa de escrever; é uma coisa que cansa e enjoa, quando se faz por obrigação. Resulta que escrevo cada dia com mais dificuldade – o essencial para prover o mesquinho pão dos meus. Assim tenho uma inevitável sensação de estar sendo roubado quando escrevo de graça – embora ninguém mais do que eu goste de me sentir junto dos amigos, que a vida espalha por todos os cantos. Tão ruim é a vida moderna que a gente tem pouco tempo para ter amigos, ou cultivá-los. “Vamos nos encontrar hoje – telefonava Raul Bopp a um amigo dele que, ainda que vivendo na mesma cidade, não via há meses. Precisamos rinchar juntos.”

Sim, só a amizade nos dá essa sensação de bem-estar e repouso que tem alguma coisa animal – cavalar ou vacum. Divido meus amigos em cavalares e vacuns. Por exemplo, você é cavalar, o Pedroso é vacum. Falar nisso estive com ele pouco depois do carnaval. Sentamos a uma mesa de canto e ficamos ali ruminando e mugindo longamente. Passei o sábado na Bahia, e vi o Carybé (não o da Rocha, mas o falso argentino); ele vai a todos os candomblés e, na Feira de Água dos Meninos, beijava a mão das velhas negras que vendiam doces. Fez uma série de desenhos esplêndidos sobre a pesca do xaréu, e disso se publicou um pequeno livro lindo; está fazendo um mural em uma residência moderna, na praia de Amaralina – por sinal que se fez na Bahia, no tempo do Mangabeira, uma coisa extremamente bela que foi essa estrada de asfalto ao longo do mar e dos coqueiros, (e ainda há um canal) até perto do farol de Itapoã.

Abaeté continua uma lagoa escura, arrodeada de areia branca; mas fizeram lá uma casa que não deviam ter feito. E você sabe, Zico, como sou generoso em arquitetura; amo nossa confusão nacional, e mesmo naquela viagem de praia me alegrou ver uma casa em forma de navio, outra em forma de coliseu (mas meio turco) depois casinhas simples e honestas com varanda, depois uma linda casa moderna. Quanto ao Dorival, tenho vergonha em confessar que ainda não o vi; preciso vê-lo, e ouvi-lo mugir. Falar nisso, o Carybé não é vacum nem cavalar; é lhama. Difícil imaginar um homem mais rústico e mais fino. Se cuspisse, cuspiria de lado, como as lhamas.

Bem, também estive em Paulo Afonso. E preciso ir lá urgentemente; no fim do ano que vem a cachoeira vai ficar borocochô, porque uma boa parte das águas será desviada para a usina. Descemos em um túnel vertical de oitenta metros cavado no gnaisse granítico. Sobrevoamos duas torrentes em caçambas. Vimos a cachoeira sertaneja, imensa, bramindo entre facheiros e mandacarus, como se sua água fosse maldita e não fertilizasse a terra, mordendo lá em baixo, vencida, a rocha do talvegue fundo.

É belo, Zico. Além disso ontem de noite também estive olhando a lagoa Rodrigo de Freitas. Depois, já tarde, choveu. A chuva também é bela. Havia um cisne – mas não na lagoa, no botequim. Vi-o de longe. O resto só conversando; me espere que este ano ainda vou a Bruxelas e faremos grandes bruxeladas. Adeus. 

rubem-braga
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