Refugou o copo de vinho que eu lhe oferecia; depois também não quis aceitar um cigarro. Não bebia, não fumava, não tinha vício. Tinha uma cara gorda e mole de padre, e falava com precisão sobre o custo da vida em São Paulo.
Contou-me por exemplo que seu pai, homem de oitenta anos (que se lembra muito bem do tempo em que centenas de burros enchiam o Largo do Arouche), seu pai, que mora na Quarta Parada, vai toda semana comprar carne em Mogi das Cruzes, onde é mais barata e mais bem servida. “Lá em casa comemos muito boa carne, todo dia” – disse ele com certa ênfase.
Não, não era casado – morava com os pais, que sustentava com seu trabalho. “Aliás” – me disse subitamente, com um brilho nos olhos e as mãos trêmulas como quem toma coragem para fazer uma confissão sensacional – “Aliás este foi o primeiro ideal que me propus a realizar na vida. E realizei. Agora estou realizando o último dos meus três ideais.”
Fiquei um instante indeciso, com medo de fazer perguntas. Nada na figura daquele comerciante faria à primeira vista supor que tivesse ideais, nem faria suspeitar aquela tensão com que, subitamente, começou a falar-me. Eu me sentara por acaso ao seu lado na mesa daquele hotel em Foz do Iguaçu.
“Visitar pelo menos um país estrangeiro. Por isto vim nesta excursão. Hoje pela manhã já cumpri o que prometera a mim mesmo: fui ao Paraguai. Agora depois do almoço vou à Argentina. O outro ideal que me propus e também já cumpri era ter um diploma.”
Não lhe perguntei que diploma tinha, e agora me lembro de que, desgraçadamente, me esqueci de reparar se havia algum anel de grau em seu dedo. Mas suponho que seja de direito, pois quem quer ter um diploma e não faz muita questão de qual seja ele, desde que seja diploma, acaba sendo bacharel em direito.
“Há pouco tempo recusei uma boa posição em uma grande companhia para não me mudar para o Rio”. Achei polido concordar com ele em que viver em São Paulo, sob certo ponto de vista, é na verdade mais interessante. “Não sei” – disse ele. “Eu não podia ir para o Rio. Eu não conheço o Rio. Agora sim, posso ir conhecer o Rio.” E então me explicou que seu sistema era este; para cumprir cada um de seus três ideais pusera ele mesmo um obstáculo diante de cada um. Como tinha desde criança muita vontade de ir ao Rio, resolvera não o fazer enquanto não cumprisse seu ideal número três – isto é, enquanto não visitasse pelo menos um país estrangeiro. O mesmo fizera em relação aos outros dois ideais. Por um momento tive a impressão de que me ia contar qual tinha sido a promessa que fizera em relação aos outros dois ideais – mas creio que ele achou que já se abrira demasiado comigo. Talvez o desanimasse minha cara meio sonolenta depois do vinho tinto do almoço, naquele dia quente.
Pouco depois ele seguiu, com o grupo de turistas de que fazia parte, para visitar as quedas e ir ao lado argentino. Só o vi depois do jantar e, como eu estava muito bem disposto, me aproximei dele. Eu estava em uma roda em que se bebia alegremente uma boa “cana” paraguaia e insisti para que viesse tomar um cálice: “Afinal, você deve estar contente hoje, precisa comemorar. Você realizou o terceiro e último ideal de sua vida – e em duplicata: visitou dois países estrangeiros!”
Embora ele recusasse o convite, sentei-me um momento a seu lado. “Sim” – disse ele –, “eu provei minha força de vontade: realizei tudo o que prometera a mim mesmo um dia. E foi duro – tive de passar muitas necessidades e me esforçar muito. Quando eu era rapazinho não tinha força de vontade – mas hoje tenho a prova de que qualquer homem pode ter muita força de vontade – é uma coisa formidável.”
Voltei para a roda onde se bebia e se contavam anedotas. Logo depois resolvemos todos sair para dar uma volta de automóvel. Convidei o homem da força de vontade – havia um lugar no carro. Ele não aceitou. Ficou ali no saguão do hotel – e quando voltei para apanhar minha lanterna que esquecera, surpreendi a expressão de seu rosto: estava sério, triste e ao mesmo tempo com um ar tão aparvalhado e tão vazio como um homem que não tivesse coisa alguma a fazer na vida e acabasse de descobrir isso.