Você me desculpará se demoro a escrever; mas o Rio, depois de um ano de ausência, (e dos 15 graus abaixo de zero que gelavam o meu nariz quando deixei essa ilustre Paris) me acolhe com a moleza quente de um regaço maternal.

Deixo-me embalar pelo canto das cigarras amendoeiras de minha rua. E aqui vai uma observação. É mentira o que diz o hino, que nossos campos têm mais flores: apenas aqui as flores dão serviço mais ou menos o ano inteiro: mas nunca são tantas como no começo de primavera na Europa, em que a terra é toda flores. Pois uma vantagem que temos, e de que ninguém fala, é o canto das cigarras.

Estive na Provença pelo verão; elas são muitas, e, mesmo correndo em automóvel, a gente ouve um “zi-zi” constante, que são as cigarras cantando, provavelmente na língua de Mistral. Pois elas cantam sempre nesse “zi-zi” agudo, universal e monótono, que baixa de todas as árvores.

Ah, elas teriam muito a aprender com suas irmãs do posto seis; agora mesmo há três ou quatro dando seu concerto vesperal. Cada uma começa sempre por uma espécie de cacarejar, que se vai fazendo mais rápido e mais alto e de súbito dispara em um canto unido. E cada uma tem sua voz e seu timbre: no geral são menos agudas que as de França: e na segunda amendoeira do outro lado da rua há uma, na tarde de hoje, que talvez seja negra: ela faz subir, na tarde loura, um canto grave e melancólico de contralto. Quando ela começa, murmuro em minha rede: muito bem, lá está Marian Anderson.

Sim, meu velho, há uma rede, e de tucum. E como o bom amigo Marcelo me deu pelo Natal uma garrafa de uísque, e a empregada é perita em torresmo, você compreenderá porque passou tantos dias sem lhe escrever este homem que ao crepúsculo volta meio cansado da praia.

Para fechar, por hoje, minhas observações sobre o momento nacional, direi ainda que pelo menos em Copacabana as cigarras são como os galos — não têm hora certa de trabalho e às vezes cantam no meio da noite. Mas não falemos de vida noturna — ou deixemos isso para outro dia. Até amanhã.

rubem-braga
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