Li há tempos, e guardei, mas não sei onde, o artigo de um higienista sobre os morros cariocas. Ele não chorava a miséria e o desconforto de nossos irmãos do morro: isso já foi muito chorado. Os homens daqui de baixo têm o coração duro e só se lembram de subir ao morro em vésperas de eleições; então prometem água gelada todos os dias e cerveja aos domingos. Depois preferem conhecer o morro através do samba. Mas não é apenas o samba que desce o morro ― adverte o sanitarista. Descem também, para contaminar nossa água, nossa comida, nossas ruas e nossa vida, enxurradas de porcaria e de doenças.
Eis o tema de um filme de horrível mau gosto que ofereço ao meu amigo Alberto Cavalcanti: um filme que deveria ser exibido obrigatoriamente, por exemplo, nos cinemas de luxo da zona do sul. Poderia começar com vistas pitorescas do morro, roupa na corda, mulatos tocando violão, negras subindo com latas de água na cabeça, etc. Mas depois entraria pelo interior dos barracos, documentaria a vida das crianças e iria até os lugares escusos. Então uma boa lente ampliadora teria de ajudar a câmera, e mesmo um microscópio entraria em cena. Depois veríamos, numa bela tarde de verão, as nuvens negras a galopar no céu, o vento virar, fazendo balés de poeira e folhas secas. Depois ouviríamos a trovoada, veríamos o relâmpago e o temporal se abater. Então a câmera deveria mostrar como a enxurrada traz todo o lixo e todos os dejetos do morro para o asfalto. Veríamos também as infiltrações de água poluída. Veríamos a imunda lama se transformar em poeira, ao calor do querido sol de nossa terra, penetrar nos apartamentos de luxo e nos palacetes, etc.
Em resumo, o filme mostraria isto, por exemplo: Copacabana é o esgoto de seus morros. Apenas uma parte das porcarias que descem vai sujar a praia; o resto fica mesmo nos quintais e nas ruas. No dia em que esse filme fosse feito, acredito que pelo menos uma classe dos problemas do morro ― os sanitários ― seria olhada com mais carinho. Pois ficaria claro que o problema não é apenas do morro; é de toda a cidade. Não podemos pretender uma vida limpa e sadia ao sopé de milhares de famílias doentes e sujas. O morro se vinga do desprezo da cidade cuspindo-lhe em cima, para usar uma expressão extremamente delicada.
O remédio, portanto, é higienizar os morros. É um bom negócio para nós. (E “um bom negócio” é uma expressão que comove mais facilmente os corações do asfalto que “uma boa ação”). Ou então podemos nos igualar, democraticamente, como está começando a acontecer com a crise de energia. Já imaginei a vida de um próspero casal de minhas relações que ocupa todo um 12° andar junto à praia: se Deus nos der uma seca mais prolongada, seus empregados acabarão desertando. Os serviços urbanos acabarão apodrecendo todos, nesta cidade insensata. E veremos o ilustre cavalheiro subir os longos degraus com um feixe de lenha, e sua distinta senhora com um lata de água na cabeça, a cantarolar um samba. Pois tudo já está começando a virar morro.