São Paulo - Vila Congonhas, São Paulo-SP, 2014. Foto de Mauro Restiff/ Acervo Instituto Moreira Salles.
No título deu para disfarçar o assunto, mas em respeito às multidões que têm verdadeira repulsa desse inseto, é preciso abrir o jogo logo nas primeiras linhas: este é um texto sobre baratas. Mas, calma, não há nada muito gráfico nem desconfortável. Nada digno das páginas de um romance de Clarice Lispector, digamos. Só mesmo alguns episódios corriqueiros em que cronistas jogaram luz sobre esses repulsivos bichos noturnos.
Otto Lara Resende disse que a barata “não é um feio privilégio do Brasil”. É universal. Por exemplo, no verão Nova York fica entregue não às traças, mas às baratas. “Só que as de lá, do Hemisfério Norte, são miudinhas” e rápidas, com fôlego de campeão olímpico. Basta acender a luz e elas “ziguezagueiam aflitas e escapam”. Driblam com facilidade muitas vassouradas, pois “fizeram milenar estudo de balística”. Neste sentido, ponderou o cronista, até que estamos bem com “o tamanhão família do nosso doméstico ortóptero”. Ao contrário de suas irmãs do Primeiro Mundo, a barata brasileira “está bem assentada onde quer que se encontre” e só sai de seu lúgubre esconderijo depois de uma “cautelosa pesquisa”.
Como quase todos nós, Otto não morria de amores pela desprezível criatura. Certa vez, topou com uma num escadão. Encararam-se duramente, olhos nos olhos. O cronista fraquejou e, por um momento, estremeceu. Ela permaneceu firme, num silêncio espesso e cascudo, com as antenas alertas, até que se retirou escadaria abaixo. No último degrau, parou e olhou para trás. É provável que tenha acenado para Otto, mas, sem óculos, ele não pôde afirmar. O encontro entomológico o levou a uma Viagem etimológica – um caminho que o inveterado homem de letras percorria com frequência.
“Peguei a palavra como se pegasse um inseto”, escreveu, ao consultar um calhamaço linguístico de 1871. Aprendeu que barata vem do latim blatta, isto é, “que foge da luz”. Nada mais apropriado a esse nosso “inimigo íntimo”, como a classificou em outra crônica, quando comentou o lançamento de Diário de um cucaracha, livro de cartas do cartunista Henfil, ilustrado justamente com uma senhora cucaracha. A barata na capa provocou náusea e protesto, e algumas livrarias chegaram a esconder o livro para não indignar fregueses. A comoção foi tanta que a editora pôs na praça uma tiragem alternativa, com um selo de “edição especial para mulheres” no lugar do inseto.
É raro, mas às vezes barata e livro se entendem. É o que conta Antônio Maria, recém-mudado para uma casa nova – nova, no caso, para ele, pois a morada já era antiga para uma porção de baratas. Uma mais clarinha, “mais alazã”, que não se juntava com as outras, costumava fazer pouso num exemplar da Antologia poética de Vinicius de Moraes. E ali permanecia imóvel, em cima de sonetos e redondilhas, observando Maria escrever na máquina. No começo, o cronista sentia certo desconforto, mas depois achou que a plateia lhe estimulava o fluxo de ideias. Barata entende o trabalho de um escritor, pelo visto.
Uma noite, para a inquietação do escriba, ela demorou a aparecer. Foi logo pensando tragédias, temendo que tivesse caído nas garras de “uma dessas gatas lascivas” que se divertem despedaçando suas presas aos poucos. Até que a barata apareceu, em cima do livro de sempre e, “como que pedindo que a seguisse”, caminhou até o banheiro. Perto de um canto onde se guardava a vassoura, ficou parada com um ar de “olhe para isso”. A área estava coberta de um pó amarelo, um veneno que a cozinheira achou por bem espalhar sem consultar o patrão. “Eu precisava fazer qualquer coisa para minha barata saber que não era eu, que não fora eu, que não seria eu, nunca”, pensou o cronista desesperado, mas era tarde. A pobre criatura tinha passeado pelo pó e, já mal das pernas, morreu de barriga para cima. O jeito foi endurecer o coração e dedetizar a casa – antes de afeiçoar-se a mais uma barata leitora, o melhor era se livrar de todas.
Carlos Drummond de Andrade também registrou uma história de barata. Ou melhor, de duas. E As baratas não eram suas, mas de Oswaldo Goeldi, mestre da gravura brasileira. Filho de pai suíço e mãe brasileira, Oswaldo viveu boa parte da juventude em Berna. Uma vez, amigos cariocas mandaram para os Goeldi um brasileiríssimo pacote de feijão preto, “recebido com alvoroço na casa suíça”. Todos os sete filhos se reuniram para abrir o presente. “E eis que das profundezas” dos grãos emergiu atarantada uma pequenina barata. “Uma baratinha do Brasil!”, gritavam as crianças, celebrando a desprevenida viajante.
Muitos anos depois, vivendo no Rio de Janeiro, o sexagenário Oswaldo andava “doente, proibido de fumar e de beber”. Em “estado de verdadeira ascese artística”, varava as madrugadas em seu ateliê experimentando técnicas de xilogravura, solitário. Sua única companhia era uma barata com uma perninha de menos, que toda noite zanzava pelas madeiras em busca de comida, quem sabe um resto de cola, uma sobra de tinta. A odisseia noturna daquele mísero ser distraía o artista e acabava lhe aliviando um pouco a “tensão espiritual”. Entre duas baratas, passou “toda uma vida de apaixonada criação”. Até de barata, quem diria, a arte tira inspiração.