Visitas de passarinho

Mãos com passarinho, São Paulo-SP, 1969 circa. Foto de Stefania Bril/ Acervo Instituto Moreira Salles.

De todas as aves urbanas que ainda nos dão a graça de sua presença, o beija-flor deve ser o mais raro. Sua fortuita visita é sempre rápida, como o bater de suas asas. Em 1982, tendo descoberto que a vizinha do segundo andar tinha o privilégio quase diário de recepcionar um colibri na varanda, Carlos Drummond de Andrade lamentou que o bichinho não se animasse a aparecer também na sua, cinco andares acima, naquele edifício da rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana.

“Confesso que me aborreci de leve”, escreveu em “O beija-flor que não vi”, “pois com beija-flores a gente não pode aborrecer-se à vera”. Por que o bichinho haveria de ignorar as “plantas floríferas regiamente ofertadas” de sua sacada? Se nem as flores, nem aqueles bebedouros cafonas de plástico eram capazes de atraí-lo, decerto a questão era pessoal. Seria preciso empenhar-se, “por humildade e conscientização”, em ser digno de merecer “a alada visita desse príncipe da natureza”.

Assim, disposto a saudá-lo “com a pouca rima e o pobre ritmo” que tinha em seu coração, Drummond deixou-se levar pelas asas da imaginação, como se lançando um pedido ao universo. Se o beija-flor o visitasse toda manhã, como fazia com a vizinha do segundo andar, suas crônicas seriam tomadas por cintilações coloridas e, saindo da máquina em voos irisados, chegariam aos jornais com um misterioso “não-sei-que-diga de celestial e terrestre”. “Sobe até este sétimo andar”, implorou à ave pequenina, “onde encontrarás algumas flores” e, mais do que isso, “um parvo mas deslumbrado carinho”.

Dez anos antes, Clarice Lispector escreveu sobre a invasão inesperada de um sabiá na casa de uma amiga. Ela estava ao telefone com a escritora quando o passarinho irrompeu pela janela e, sem conseguir achar a liberdade de volta, “pousou num quadro acima da cabeça” da dona da casa. Pouco depois, ainda agitado, pulou nas costas nuas de verão da mulher e ali mesmo se aninhou. Com muito cuidado para não espantá-lo, ela desligou o telefone e com mãos leves de “segurar a corola de uma flor sem fazê-la murchar”, recolheu o pássaro, que se deixou pegar.

E lá ficou ela de sabiá na mão, sentindo o seu coraçãozinho “em louca taquicardia”. O batimento “apressadinho e desordenado” contagiou o seu coração de gente, que também palpitava depressa. Naquele breve intervalo, estabeleceu-se uma bonita “Taquicardia a dois”. Junto da janela, a mulher espalmou a mão, onde o sabiá permaneceu ainda por alguns instantes e, então, “deu uma voada lindíssima de tanta liberdade”.

Fosse um pombo a adentrar o apartamento da amiga e a crônica de Clarice perderia toda a candura. Só um poeta como Paulo Mendes Campos para dar ao pombo, o último na lista de visitas desejáveis, um tratamento digno, com direito a uma complexa e misteriosa compreensão da vida. Em “O pombo enigmático”, Paulo põe um casal de pombinhos apaixonados (literalmente) em diálogo durante uma bela manhã de outono.

“Às quatro azul em ponto casarei contigo no mais alto beiral”, anunciou o macho. Do lado norte da Candelária. Na hora marcada, lá estava a fêmea, pontualíssima, mas o noivo não. Arrulhando humilhada e ofendida, a pomba “contemplava acima do campanário todas as possibilidades da rosa dos ventos”, mas no céu só voavam andorinhas. Dali a pouco, seria possível que voassem também gaviões famintos, de olho em presas fáceis como ela. Só depois de longos quinze minutos – e “um quarto de hora muito custa a passar para uma pombinha que aguarda o pombo no beiral para casar” – ela avistou o prometido. Ele vinha vindo caminhando, sem pressa.

“Perdeste a noção do tempo ou do templo?”, indagou. “Por Deus, perdão, pomba minha”, respondeu ele. “Olha a tarde! Que azul! Que abril azul!”, justificou-se. A noiva não compreendia o que tinha a tarde azul a ver com ela ali, abandonada. “A tarde tão bonita, pombinha, que era um crime voar, vir voando” – disse o pombo deslumbrado. – “A tarde tão bonita, meu amor, que eu vim andando.”

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Nota do Editor: Esta nota não tem a ver com passarinho, mas com crônica. Podendo, não deixe de ler o ótimo texto “Rabiscos, retoques e cronistas”, da nossa editora Katya de Moraes, a respeito das muitas anotações que os cronistas deixaram em recortes e documentos do acervo do IMS – disponível sempre, é bom lembrar, a curiosos e pesquisadores.