Sertão do Nordeste, Brasil, década de 1970. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
O escritor Graciliano Ramos ocupa uma posição incomparável em nossa literatura. Autor de uma obra densa feita em prosa seca, é reconhecido sobretudo pelos seus primorosos romances de escrita reveladora do Brasil. Agora, ao sentar-se na vigésima cadeira da nossa muito bem-servida mesa do Portal da Crônica Brasileira, os leitores têm a oportunidade de conhecer um lado menos celebrado de seu conjunto: o de cronista.
“Menos celebrado” não por falta de mérito, mas por excesso de grandeza dos romances, esteja claro. Em seu alentado texto de apresentação, o especialista Thiago Mio Salla, responsável por uma reedição minuciosa e anotada da obra de Graciliano, relembra que o crítico Alfredo Bosi classificava várias crônicas do escritor como obras-primas, “continuando de modo seguro a melhor tradição brasileira no gênero, cuja fonte principal seria Machado de Assis”.
A trajetória do alagoano na imprensa começou aos 22 anos, em 1915, ao sair da cidade de Palmeira dos Índios rumo ao Rio de Janeiro, nos ensina Thiago na mesma apresentação. Ao longo de quase quatro décadas de contribuições esparsas, Graciliano desovou pouco mais de 200 crônicas em diferentes periódicos – incluindo a revista Cultura Política, porta-voz da doutrinação ideológica do Estado Novo, regime responsável pela prisão arbitrária do escritor que, por nove meses, amargou na retenção de Ilha Grande por ser comunista, sem nunca ter recebido uma acusação formal.
A sua produção de crônicas, reunidas postumamente em três volumes (Linhas tortas, Viventes das Alagoas e Garranchos), é descontínua mas multifacetada, “como um rio intermitente comum ao semiárido de sua região de origem”, destacou Mio Salla. A linguagem é sempre concisa, mas os tons vão do discurso reflexivo ao espírito zombeteiro, e os assuntos orbitam tanto a vida literária nacional quanto o seu passado sertanejo. Na seleta de 20 textos disponíveis no Portal, o leitor pode já colher algumas dessas pérolas diminutas. Além disso, pode aprender um pouco mais sobre sua intrigante biografia esmiuçada na linha cronológica.
Se aceitar uma sugestão de por onde começar, experimente abrir “Traços a esmo”, sua crônica de estreia em O Índio, o “jornal independente, literário e noticioso” das Alagoas, em 1921. Disponível também em áudio, em uma bela leitura do ator Luiz Octavio Moraes, a crônica se ocupa em apresentar o escritor que passaria a habitar aquele canto de página: “Estou aqui de passagem. Sou um hóspede nesta folha”. Antes de entabular conversa, Graciliano põe as cartas na mesa, revela suas intenções e não perde tempo: “Se tiveres paciência de ouvir-me, bem; se não, põe o teu chapéu e raspa-te”.
O que parece só mau-humor árido vai tomando ares irônicos em observações peculiares, como se estivéssemos ouvindo um velho professor de português cujo pessimismo fatalista aprendemos a amar. De quebra, o cronista formula uma síntese original do ofício: “Sou assim uma espécie de vendedor ambulante de sabão para a pele, de unguento para feridas, de pomada para calos”, que oferece seus produtos de porta em porta, toda semana. É possível que, mesmo depois de ler a coluna, “os calos da tua consciência continuem duros e não sintas melhora na sarna que porventura tenhas na alma”, mas, de todo o modo, o prejuízo terá sido pequeno e “terás a satisfação de dizer que recorreste a uma botica”. Sua prosa será sempre uma consolação, talvez útil, talvez não.
Em 2024, com a entrada da obra de Graciliano Ramos em domínio público, uma onda de novas publicações reabasteceu as livrarias com os seus romances. Enquanto aguardamos as editoras darem nova roupagem também às crônicas do alagoano, vamos beliscando sua deliciosa prosa enxuta aqui no Portal da Crônica Brasileira.