Não posso sair de casa. Que escrever, então? Olho em volta, e reparo que já escrevi sobre tudo o que me rodeia. As amendoeiras da rua, as árvores do quintal além; os meninos que jogam bola, as mulheres que vão à feira vizinha; os pequenos bandos que, nas manhãs quentes, passam para a praia; o vassoureiro e o funileiro: os humildes bichos que já viveram nesta casa, o gato, o cachorro, o passarinho, o jabuti; a minha gente; a sala, a rua e, exaustivamente, eu mesmo.
Já amaldiçoei a construção em frente, com sua serra circular: já falei de seus operários e do botequim da esquina; o anúncio eleitoral escrito na parede e no tapume; o telefone, o pé de milho que cresceu no canteirinho da frente, o tomateiro que apareceu no quintal, a rede de tucum onde me deito para olhar o céu, o corrimão da escada, a enceradeira, esta pequena máquina de escrever, e tudo.
Nunca nenhum de meus parentes lavradores explorou tão bem o seu sítio; este meu foi lavrado palmo a palmo, através da ronda dos ventos e das estações: e ainda cacei escondido pelas terras dos vizinhos, ainda roubei uma couve-flor da verdureira que fica embaixo da janela de Carlos Drummond de Andrade, lancei minhas redes no mar, fiscalizei os lotações que passam na outra rua, a acácia que despeja cachos de ouro, na glória do verão, sobre a calçada próxima, a moça que mora no caminho da praia, as gaivotas que fazem curvas no ar; e chorei a falta d’água, abençoei as cigarras, celebrei as empregadas, cumprimentei as visitas
Sou um homem sem imaginação: agarro-me às pessoas e às coisas, à terra, aos muros, aos bichos, ao que posso tocar e ver todo dia: mesmo se falo de mulher, ser tecido de fantasias, não sei mudar uma cor dos cabelos ou a curva de um peito de pé: sou exato por pobreza, minucioso por mania, e quando escrevo sobre a amada grata ou ingrata tenho de me esforçar para não dizer um mundo de detalhes que me obcecam: mentir é difícil, mas não por virtude, antes por vício.
Que escrever hoje? Que chove aos potes: que os operários da construção tiveram de parar de trabalhar. Apenas um tira com a pá a pedra britada que o caminhão trouxe: está completamente molhado e a luz pálida da manhã brilha nos músculos de seus braços negros. Se eu começasse a crônica por este assunto, eu descreveria esse homem e esse caminhão com minúcia, até exasperar o leitor.
Mas não é preciso: a crônica está de bom tamanho: e consegui fazê-la. Deus seja louvado, sem falar nessa imagem de quem não posso ver nem tocar e que, entretanto, é a única realidade que existe, e diante de quem esse operário, essas paredes, essas árvores, e a casa e a rua, e eu mesmo, somos sombras sem sentido, nem dimensão, nem vida.