Foi na chácara hospitaleira e alegre de Fritz de Souza Queiroz, em um domingo de sol, que encontrei um companheiro de guerra. Ele recordava momentos da campanha, na Toscana, quando uma jovem, conhecida pela sua beleza singular, disse, estirando, em um momento de preguiça, as longas pernas nuas e perfeitas que não queria saber de guerra, e não gostava nem de ouvir falar nisso: “eu sou muito egoísta, tenho uma vida muito boa, não gosto nem de tomar conhecimento de coisas tristes”.

Chocou-se, o meu amigo, com aquele cinismo de moça rica e frívola, e mais ainda com a minha tranquila aprovação. E enquanto a moça ia mergulhar na piscina o corpo ainda meio adolescente, ele me acusou de hipócrita; e uma bela senhora, que ouvira a conversa, emendou que eu era um galanteador barato, vulgar e, para dizer tudo, gagá.

Objeto de muita mofa, achei melhor calar o bico. Agora, porém, na hora de bater minha crônica, relembro essa conversa, e revejo, com seu passo elástico sobre a relva, aо sol, entre folhagens coloridas, a moça egoísta. E me pergunto se, em sua frivolidade, e na petulância com que acentua, ela não mostra, afinal, uma sabedoria instintiva e não defende um direito que, nem por ser um privilégio de classe, deixa de ser sagrado. Que outros milhões de moças não gozem desse conforto, é triste; mas eu me recuso a lhe negar o direito de pensar que o sol foi feito especialmente para dourar sua pele. Foi.

Em um mundo tão amiúde feio e triste, a beleza é em si mesma uma virtude cuja pureza e alto valor, eu tenho necessidade de respeitar, onde a encontre. É natural amar os pobres e desgraçados, e ser solidário com eles, mas me parece uma compreensível perversão sentimental amar a pobreza e a desgraça. Essa perversão é mais comum do que se pensa; tanto como o amor ao dinheiro que, em tanta gente, estraga os prazeres que o dinheiro pode permitir.

Há um esnobismo da pobreza, que me parece apenas menos ridículo do que o outro, e acontece mais entre os remediados que entre os verdadeiros pobres. Esse esnobismo leva até ao amor afetado da sujeira, e de outros desconfortos, como o esnobismo do rico o leva a encher sua casa de quadros que não ama ou a ouvir conferências e concertos que os torturam de tédio. 

Esperemos que um dia todas as moças possam crescer belas e sadias e ter conforto e sossego para cultivar seus encantos e entreter seus sonhos. A desigualdade social, odiosa em si mesma, e ainda mais odiosa quando se refere às mulheres e, principalmente, às crianças. A existência de crianças pobres e miseráveis é o pecado fundamental de nossa sociedade; não respeito nenhuma filosofia que pretenda justificá-la e nenhuma religião que espere nos levar a aceitá-la como coisa natural.

Mas a flor não tem culpa de ser bela: e na petulância dessa adolescente que pisa o gramado com a sua sandália e anda ao sol pelo prazer de dourar seu corpo seminu, nessa inconsciência satisfeita de animal jovem, há um instinto sadio e uma defesa sagrada. Não é essa menina que enfeia o mundo: são homens velhos, de almas tortas e sujas, que manobram as máquinas da exploração e da guerra a fazer negócios torvos com o suor e o sangue das gerações.

A moça que salta na água azul é apenas um momento de beleza, e isto é ser muito.

rubem-braga
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