Mataram você no Brasil, Jean-Paul Sartre. Soube da notícia entrando à tarde no bar em que multos amigos se encontram antes do jantar para tomar alguns uísques e bater papo. Vendo o jornal, logo o telegrama me pareceu suspeito, pois vinha de Belém e tinha um ar de falsidade; além disso os outros jornais não diziam nada. Mas houve pelo menos uma fração de segundo em que acreditei — e bastou para revê-lo, como o vi a última vez, sentado na mesinha do fundo do Antico Caffè Grego, na via Condotti, em companhia de uma jovem loura e de um rapazinho magro. Foi em Roma, em novembro passado, e então você me disse que viria em 52, provavelmente em abril.

Revi-o antes, como o vi duas vezes, em sua mesa de trabalho, naquele sobradão da rue de l’Université, diante da praça de Saint Germain, cercado de livros, fumando um cigarro forte, acendendo-o com os fósforos tirados de uma caixa grande, dessas que as cozinheiras usam. Simpatizei com o fumo forte e com a caixa grande de fósforos, e o ambiente simples em que trabalhava aquele homem pequeno, feio, de olhos vesgos atrás dos óculos, mas com alguma coisa de sólido e de rude no corpo retaco e na palavra clara, corajosa e precisa — que era você.

Ligaram seu nome a tanta sofisticação barata que, por mais que a gente não queira, tem uma surpresa em encontrar esse tipo de intelectual que tem alguma coisa de um camponês ou de um velho sargento alsaciano. Revi-o ainda como o vi algumas outras vezes na rua, ou em um bar — e naquela fração de segundo, antes que o espírito crítico começasse a reagir, senti a sua morte, Jean-Paul Sartre. E ali no bar havia outras pessoas comovidas, que telefonavam para buscar um desmentido.

Aceite, portanto, meus cumprimentos pelo fato, bastante simples, mas admirável, de continuar vivo. E não se entristeça com a ideia de morrer no Brasil. Aqui nem sempre se vive bem, mas se morre bastante bem. Nesta mesma semana houve algumas boas mortes. Um homem, por exemplo, um desses pobres tipos iguais em tudo, menos no talento, àquele Jean Genet de quem você tanto ria, contando seus casos, foi preso por acaso e sem motivo na rua e na cadeia foi espancado até a morte por três policiais. Um jornal deu a notícia — e o sr. chefe de polícia, não podendo negá-la, vingou-se passando uma descompostura na imprensa. Dias depois o mar jogou à costa quatro corpos de marinheiros — e então o Ministro da Marinha teve de admitir que explodira uma lancha, em que morreram os quatro — pelo menos os quatro. Simplesmente não achara conveniente dar a notícia antes.

Você vê, aqui a morte é boa, porque alguma coisa quase sem importância — o que apenas aborrece um pouco é essa mania da imprensa de noticiar mortes. A sua foi contada, mas não foi morrida; e se fosse morrida talvez não fosse contada; e se fosse contada, o chefe do trânsito (você foi atropelado, Sartre) de Belém talvez pusesse a culpa na imprensa.

Assim é, meu caro, o país em que você não morreu. Meus cumprimentos, e longa vida, longa e boa.

rubem-braga
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