Foi o timbre especial de uma voz, entre tantas. Voltei devagar a cabeça, enquanto o amigo me falava, e procurei, sem  saber porque, localizar a dona daquela voz. Mas o amigo contava uma coisa interessante, e minha atenção voltou para ele. Só alguns instantes depois, ouvindo, entre vozes de homem uma risada clara de mulher, é que um nome me cruzou a cabeça como um relâmpago e me ergui da cadeira:

– Mariana!

Ela hesitou um instante, e quando meu nome saiu de sua boca, já estávamos de pé, e abraçados. Pobre é a vida de um homem; mas é estranho como ele desperdiça riquezas, e nem se lembra mais. Se passados tantos anos, eu a tivesse ido encontrar sabendo que iria vê-la, ela também esperasse me rever, talvez não houvesse essa explosão de carinho tão intensa que parecíamos, entre os outros que nos olhavam surpresos, dois amantes que tivessem passado anos ansiando um pelo outro, e se buscando em vão. Não sei se ela sentiu, depois daquela efusão tão grande, a mesma estranheza que eu – se lhe acudiu subitamente a ideia de que antes não éramos amigos assim, e não achou estranha a imensa alegria do encontro. Mas essa alegria era tão grande que não tinha necessidade de ser explicada, mesmo se o pudesse.

Nesse acaso dos encontros do mundo, que mistério é esse que faz se verem friamente duas pessoas que se deixaram com tanto carinho e saudade, e torna contrafeitos amigos de infância, mas também dá esse choque de prazer em velhos conhecidos escassamente cordiais? Ela estava bonita, talvez ainda mais bonita que antes, mais dona de sua beleza. Há adolescentes e até moças que parecem não ser donas das próprias pernas, ou cujos olhos parecem um acaso, ou são inconscientes de seus ombros. Nelas, a beleza parece um acidente, a que são, no fundo, estranhas; aconteceram-lhes aqueles ombros. Sabem apenas que são bonitas, mas não tomaram posse de si mesmas, são um fato demasiado recente e ainda instável, como um pássaro que se balança em um galho florido. Nessa mulher madura, a beleza está morando, a beleza não é um acontecimento fortuito, é sua maneira de ser.

Ela conta suas histórias, eu conto as minhas, mas toda essa multidão de pessoas e fatos que houve durante todo esse tempo em que não nos vimos tem apenas um sentido vago. Como se a gente entrasse no cinema para ver um filme qualquer e saísse, então aquelas peripécias de amarguras e alegrias que iam nos interessando de minuto em minuto perdessem todo o sentido, nós dois retornando à rua da realidade. A realidade somos nós dois, amigos, felizes de nos encontrarmos. E seu movimento de cabeça, o gesto de sua mão ao segurar a minha que lhe apresenta o fogo para o cigarro, o timbre de sua voz longamente extraviado, mas nunca perdido em minha lembrança – tudo é um belo reino que de súbito recuperei, sem nunca ter sido meu. Somos subitamente ricos um de outro, e conscientes dessa riqueza afetiva com uma extraordinária pureza.

Quando saímos e me atraso um instante para comprar cigarros, e a vejo assim, de corpo inteiro, andando firme e suave na sua beleza, sigo-a um pouco mais devagar para durante mais um instante ter o prazer de revê-la dos pés à cabeça para antes de lhe segurar o braço de velha amiga e lhe dizer, com uma franqueza instantânea, que a faz rir: “Mariana, eu acho impossível uma pessoa viver sem você”. E ela ri e agradece – pois lá estamos na idade de poder dizer e ouvir, sem ilusões, as mais simples, e belas e graves tolices.

rubem-braga
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