Se de Copacabana e Ipanema, à noite ou pela madrugada, nós vemos a luz branca e a luz vermelha do farol que da ilha chamada Rasa nos manda sua mensagem de fé, a nós, degredados nesta praia de lágrimas, é preciso que algum dia alguém suba na ilha e procure o faroleiro e diga; aqui estamos, irmão.

Assim pois saímos ao mar e quem sai da Guanabara basta ir em frente, tocando para o sul, que chega à ilha. Se passar da ilha e navegar sempre para o sul, não achará nada e mais nada, nunca nada, e talvez, antes de bater na fria Antártida aviste apenas, além de 60 graus de longitude, as tristes Orcadas do Sul.

Mas fiquemos aqui na ilha, que ainda é Brasil; tem caju e pitanga, bananeiras, tem abacate e mangueiras e goiabeiras, tem laranjeiras e sabiá, tem beija-flor, tiê-sangue, bem-te-vi, lacraia, aranha caranguejeira. Cobra não tem não, me informa Astrogildo; cobra tem é na ilha das Palmas, ali perto, e na Redonda também. Ainda que pequena, a Rasa tem dignidade, com seu mato de gravatá, figueira brava, guararema, aroeira, coqueiro baba-de-boi. Às vezes chegam pássaros da terra, canários da terra, acontecem papagaios — “mas os papagaios eu acho que são fugidos dos navios que vêm do norte”. E tem borboleta. E ratos? “Tinha muito rato, mas agora têm muitos gatos vivendo no mato e estão dando cabo deles”. Mas Astrogildo me avisa que qualquer dia vai fazer uma caçada de gatos. “Matar não, que tenho pena; encher um caixote de gatos, mandar soltar em terra, porque eles estão comendo muito passarinho; acho que na ilha não tem mais nenhum maçarico, tudo o gato comeu”.

Subimos ao belo farol, nobre construção de pedra no centro de um pátio calçado de mármore branco e negro onde a água da chuva é recolhida. Aqui é tudo sólido e limpo, essa limpeza exemplar da Marinha, e há palavras em latim dizendo que em 1883, reinante D. Pedro II, foi inaugurada a luz elétrica. Mas há uns anos atrás, quando vim à ilha, a luz era de querosene. Agora voltou a ser elétrica, porque se instalou um motor a óleo para o Rádio Farol que dia e noite emite seu prefixo para os aviões e navios perdidos nas ondas e nuvens deste mundo, dizendo que aqui é um lugar no mar defronte da baía de Guanabara, aqui é o Rio de Janeiro.

Lembro-me de que anos atrás, quando estive aqui, pedi pelo jornal, para Astrogildo, uma geladeira, onde sua família possa conservar o peixe e a verdura, ou a carne que vem do Rio.

— Já tem geladeira? 

— Que nada...

Pergunto a Astrogildo se ele precisa de alguma coisa, talvez haja pessoas que tenham um gesto para esse homem da ilha. Ele me diz que tem uma pata e uma gansa, mas não tem nem pato nem ganso, também faz falta muda de bambu que no futuro dê para cortar caniço para os homens e meninos da ilha, um veterinário para explicar que doença que está dando nas cabras que ataca as pernas, o bicho fica tremendo, roda, roda e cai morto; e quem sabe aqui seria bom para criar galinha-d’angola. Quem quiser mandar algum animal ou vegetal para a ilha (muda de capim era boa ideia) mande para Diretoria de Hidrografia e Navegação, na ilha Fiscal, aos cuidados do faroleiro Felix, que toda terça-feira vai de lá um barco na ilha Rasa.

Agora, com o pessoal do rádio, vivem aqui umas seis famílias “na melhor paz, graças a Deus” e há mocinhas que fazem olhos tristes quando nós perguntamos se elas têm ido muito a bailes e cinema: “aqui não tem nada...” responde uma de seios duros, com visível amargor.

Mas o sargento da rádio ganha 5.600 cruzeiros por mês, e merecidos, porque é boa praça; Astrogildo, porém, sendo da Marinha, mas não sendo militar, ganha apenas 1.900, ele que tem 7 anos só de ilha Rasa, já esteve no farol de Cabo Frio, já esteve no Sergipe. Não, faroleiro não é boa carreira. Voltamos no mar assanhado, temos de navegar para sudeste para não pegar esse vento violento de lado, e depois fazer proa para o Leme para chegar ao posto seis. O sol vai morrendo glorioso sobre as ilhas Tijuca. Que morra; Astrogildo acenderá sua luz humilde, mas certa, no meio das trevas, no meio do mar.

rubem-braga
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